Quantcast
Channel: Ney Matogrosso – Farofafá
Viewing all 51 articles
Browse latest View live

Rádio Farofa: deixa eu te ver, peixe

$
0
0

Bku_MV-CcAAzAbH.jpg-large

Na água, os peixes (do rio Piracicaba, por exemplo) estão morrendo. Na terra, os ambientalistas estão chegando os ambientalistas. No ar, os urubus continuam passeando a tarde inteira entre os girassóis. E FAROFAFÁ chora com os rios, cantando músicas de peixes.

1. Doces Bárbaros (Caetano VelosoGal CostaGilberto Gil Maria Bethânia), “Peixe” (1976) – Vi o brilho verde peixe prata.

2. Erasmo Carlos, “Panorama Ecológico” (1978) – Lá vem a temporada de peixes.

3. Roberto Carlos, “As Baleias” (1981) – O gosto amargo do silêncio (Friboi) em sua boca vai te levar de volta ao mar e à fúria louca.

4. Luli & Lucina, “Suba na Baleia” (1984) – (Não) mexe com Oxum(aré).

5. Ney Matogrosso, “Homem de Neanderthal” (1975) – Caçando caramujo na beira do rio.

6. Raul Seixas, “Peixuxa (O Amiguinho dos Peixes)” (1975) – Tem gente trabalhando no fundo.

7. Alceu Valença, “A Foca” (1980) – Quer ver as focas bater palminha?, é dar a elas uma sardinha.

8. Alípio Martins, “Piranha” (1974) – Piranha é um bicho voraz.

9. Os Originais do Samba, “Tragédia no Fundo do Mar” (1974) – Assassinaram o camarão…

10. Beth Carvalho Zeca Pagodinho, “Camarão Que Dorme a Onda Leva” (1983) – Hoje é o dia da caça, amanhã do caçador.

11. Pagode da 27, “Resultado da Pescaria” (2012) – Tarrafeei.

12. Gang do Eletro, “Wal Pescador” (2010) – O pescador do amor tupinambá.

13. Paulo Diniz, “A Seca de 1932″ (1976) – Meu povo todo chorar.

14. Milton Nascimento, “Milagre dos Peixes” (1973) – Milagre. Dos peixes.

15. Simone, “A Sede do Peixe (Para o Que Não Tem Solução)” (1978) – Para o que não tem solução?

16. Luli & Lucina, “Tripa de Peixe” (1982) – No fundo do peixe, água de moiá.

17. Tetê Espíndola, “Cunhataiporã” (1982) – E descer o rio Paraguai cantando as canções que não se ouvem mais.

18. Rogério Duprat (com Rita Lee), “De Papo pro Á” (1970) – Não quero outra vida pescando no rio.

19. Inezita Barroso, “Rio de Lágrimas” (1972) – O rio de Piracicaba vai jogar peixes fora.

20. Gordurinha, “Vendedor de Caranguejo” (1960) – Eu podia descansar, mas continuo vendendo caranguejo.

21. Lopes Bogéa, “O Homem do Peixe” (1988) – Açoite de maresia maranhense.

22. Sivuca, Hermeto Pascoal e Gloria Gadelha, “Samburá de Peixe Miúdo” (1978) – No mar de areia eu vi a sereia cantar.

23. Clara Nunes, “Peixe com Coco” (1980) – É um peixe com coco? Eu vou lá.

24. Pinduca, “Siri e Caranguejo”(1974) – É o siri mais o caranguejo, papai, que vêm na ponta do pé.

25. Jackson do Pandeiro, “Atum” (1964) – Qual é o peixe? Qual é o peixe?

26. João Gilberto, “O Sapo” (1970) – Gorongondon.

27. Gal Costa, “A Rã” (1974) – A rã, o sapo, o salto de uma rã.

28. Jackson do Pandeiro, “Cantiga do Sapo” (1959) – Me diz quanto foi?

29. Baiano & Os Novos Caetanos (Chico Anysio Arnaud Rodrigues), “Perereca” (1975) – Lá no Central Park tem uma lagoa.

30. Renato Teixeira, “O Sapo” (1973) – Olha, escuta o sapo.

31. Tetê Espíndola, “Piraretã” (1980) – Olhos de jacaré.

32. Dorival Caymmi, “O Vento” (1957) – Curimã lambaio.

33. Tom Zé, “Peixe Viva (Iê-Quitingue)” (2000) – Lambaio enguia curimã.

34. Titãs, “Felizes São os Peixes” (1993) – Felizes?

35. Elis Regina, “Querelas do Brasil” (1978) – O BraZil não merece o Brasil. O BraZil tá matando o Brasil.

36. Cilibrinas do Éden (Rita Lee Lucia Turnbull) (1973) – Os mercadores da grande cidade, contando almas, vendendo mentiras, ficando ricos, bebendo fumaça.

37. Ney Matogrosso, “Pedra de Rio” (1975) – Você é meu rio e eu pedra de rio – sem peixe?

38. Nara Leão, “Suíte dos Pescadores” (1965) – Um peixe bom eu vou trazer.

39. Milton Nascimento, “Peixinhos do Mar (Cantiga de Marujada)” (1980) – Quem me ensinou a nadar foi, foi, marinheiro, foi os peixinhos do mar.

40. Inezita Barroso, “Peixe Vivo” (1958) – Como pode, o peixe morto?

41. Milton Nascimento, “Peixinhos do Mar (Cantiga de Marujada)” (1980) – Ê, nós, que viemos de outras terras, de outro mar.

 


Ney Matogrosso e o ódio à política

$
0
0

A direita brasileira está em polvorosa com o vídeo do cantor Ney Matogrosso criticando os governos do PT. Ele é parte de uma entrevista para a emissora RTP, a mesma em que o ex-presidente Lula criticou o Judiciário brasileiro pelo julgamento do mensalão. Vejam o trecho reproduzido por diversos usuários do YouTube:

Ney Matogrosso, que foi a Portugal fazer dois shows pelos 40 anos de carreira, fala algumas inverdades. Uma delas é a de que os beneficiados pelo Bolsa-Família não têm a obrigação de matricular seus filhos na escola. O cantor apenas reproduz a crítica de muitos brasileiros que condenam o programa social sem conhecê-lo em profundidade.

Não é a primeira vez que o ex-Secos & Molhados (a banda que ousou desafiar a ditadura brasileira) criticou um governo do PT. Em agosto de 2005, auge do escândalo do mensalão, Matogrosso falava de sua decepção com Lula, em entrevista à revista Época.

Ney Matogrosso em entrevista à TV RTP

Ney Matogrosso em entrevista à TV RTP

Em uma democracia, é salutar que parte da música brasileira se manifeste livremente, assim como fizeram Ney Matogrosso, Roger (do Ultraje a Rigor) e Lobão. O vídeo da RTP pode virar meme, ser usado nas campanhas políticas contra a presidente Dilma Rousseff e até provocar uma reação em cadeia da classe artística, esta cada vez mais preocupada com o seu próprio umbigo.

Aos 72 anos, o pós-tropicalista Ney Matogrosso expressou um sentimento que não é exclusivo da direita, mas também do centro e da esquerda brasileiros em relação à Copa do Mundo. A bola nem começou a rolar, mas o sentimento parece ser o de que só Deus pode salvar a América do Sul.

Se salvar o Brasil, elevando o nível da discussão política, já estaria de bom tamanho.

Vira vira vira Valesca

$
0
0

IMG_5624São 16 horas de domingo na Virada Cultural, e Valesca Popozuda ainda não chegou. Como convém a um popstar no auge, nossa Filósofa Contemporânea está levemente atrasada. Uma multidão se amassa pelo largo do Arouche afora.

Há aglomerações de fãs à espera na entrada de serviço do palco Arouche; de jornalistas, fotógrafos, cinegrafistas e fãs no cercado de imprensa e convidados; de gente viva e feliz no Arouche inteiro. Tod@s queremos Valesca.

Rapidamente, o céu se torna carregado das nuvens de chumbo da senhora Iansã de Maria Bethânia. Quem chegará primeiro,? Valesca ou a chuva que não caiu na Cantareira, que não caiu durante a Virada inteira até agora?

Valesca chega primeiro – Valesca chega sempre primeiro, mesmo se estiver levemente atrasada.

Passam cerca de 20 minutos das 16 horas ela quando faz entrada apoteótica, secundada pel@s bailarin@s moldad@s na massa fina e fofa da diversidade sexual e racial, pelo próprio carisma e magnetismo, pelos versos matreiros e inteligentes de “late que eu tô passando” e “hoje eu tô solteira, ninguém vai me segurar”.

Mas, mal Valesca começou a cantar, o dilúvio despenca num jato de cólera pelo centro de São Paulo.

Talvez São Pedro ande com raiva de São Paulo, como já desconfiava São Itamar Assumpção no antigo ano de 1994. Decididamente, São Pedro anda bipolar. Às vezes seca tudo, às vezes molha tudo – e nem num dia nem no outro os políticos & a mídia de São Paulo conseguem escapulir da surra do santo que lava o chão do céu.

Talvez sejam os eflúvios sacros da micropasseata de cartazes em estilo “stop! in the name of Jesus” que circulava pelos fundos do palco de Valesca enquanto esperávamos por ela. Pois sangue de Deus tem poder contra a liberdade sexual e racial e feminina e racial, tem ou não tem?

Talvez, não, seja cativa da coletividade paulista de marra porque não gosta de funk, de funk carioca, de funkeiros, de cariocas – não somos racistas!!!

Talvez fosse menos mandinga do catolicismo e mais dos orixás, das ayabás, da Iansã de Bethânia, “tempo bom/ tempo ruim”, dos iconorixás que ornaram em neon a noite e o amanhecer da Virada no Parque da Luz.

IMG_5207

Talvez azinimigas de Valesca afinal tivessem mesmo aquele poder de ódio que ela tanto temia, aquele poder de rancor que nem beijinho no ombro consegue curar. Costura na boca do sapo tem poder, já cantava a velha fluminense interiorana Clementina de Jesus.

Talvez, nada disso, seja só a vida mesmo, em sua brutal normalidade e banalidade. Um dia chove, no outro bate sol. Um dia chove na Cantareira, outro dia chove na Billings. Um dia o Nordeste seca, no outro dia é o PSDB que esvazia as reservas.

Mas Valesca.

IMG_5626

Valesca enlouquece uma plateia preparada para o Arouche, para a lotação esgotada do megafestival democraticamente gratuito, para o vagão espremido do metrô e do trem metropolitano. Mas então chove como se não fosse haver amanhã – e quem diz que para a chuva estaríamos preparados nós, paulistas do fígado estuporado? Não estávamos.

Saímos todos correndo, apavorados – mas apavorados de quê? Da chuva? Dos granizos do tamanho de jacas (ok, estou exagerando um pouco) que batem nas nossas caras? Do frio que venta a Virada? Da chuva fria? Dos arrastões psicossociais na babel democrática paulista que é só a única coisa que a Folha de São Paulo consegue enxergar em São Paulo (e no Brasil) há 514 anos? Do sul-matogrossense Ney Matogrosso, que deu um vira-vira-lobisomem outro dia lá nas gringas, antes de voltar americanizad@ para este após-calypsico pós-BraZil?

Seja quem for o bicho-papão, o céu atira pedras de granizo, de granito sobre nós, e nós fugimos apavorados para baixo da marquise. Daqui da marquise, não dá para ver o litoral sorumbático do paulistano Roger Moreira. É só chuva e pedra e vento e gente correndo e a plateia que agora há pouco estava apinhada de gente e agora é só deserto e chuva e pedra e gente correndo.

Mas, surpresa!, a voz de Valesca Popozuda continua a ecoar pelo Arouche adentro e afora, com granizo e tudo. Será que a mardita também saiu correndo e esqueceu de desligar o playback?

Não, crianças, Valesca não se esqueceu de desligar o playback. Valesca se esqueceu foi de sair do palco, mesmo expulsa à porrada pelos granizos, pela chuva, pelo frio, pelos choques elétricos ao microfone molhado. Nem por Iansã, por São Pedro, pela Universal do Reino de Deus, pelo Universo em Desencanto ou pela macumba dazinimigas. Nem pela plateia de açúcar que fugimos para debaixo da marquise.

Valesca prosseguiu o espetáculo, numa atitude de autoconsagração que terminaria com ela ajoelhada, agradecendo a Deus(a) por ser quem ela é.

Não há juízo de valores por aqui. A maioria dos shows de encerramento foi justificadamente cancelada pelo dilúvio de um São Pedro bipolar surtado à beira de um ataque de fúria. A paraibana Roberta Miranda não pôde cantar no Arouche eletrificado pós-Valesca. A amapaense Fernanda Takai do mineiro Pato Fu nos conta que os brinquedos da música de brinquedo da Viradinha ficaram avariados pela tempestade princesa. Pelo que conta diretamente da produção do megafestival o querido Rodrigo de Araujo, o grupo gaúcho Apanhador Só se tornou o ato de encerramento da Virada Chovida, num show acústico cumprido na raça, no asfalto, no gogó, neném.

E a carioquíssima Valesca.

Valesca não é melhor nem pior que ninguém (muito menos é igual a ninguém), mas o que a separa de artistas que ameaçaram não subir no palco pela falta de um microfone quando ainda nem chovia é o que separa os artistas “de verdade” dos meninos mimados, os brasileiros dos braZileiros, a mídia sem pauta pronta da Folha e da Globo, o Brasil que quer crescer do Brasil que está contente em se conservar escravo.

O Brasil tem mudado profundamente nos últimos anos, e não era de se esperar que a arte, a cultura e música do Brasil não acompanhassem o movimento. Valesca é a cara da mudança na música brasileira, é o Brasil novo que se desgarra feito um continente de uma ilha de artistas (e cidadãos) acomodados, resmungões, politicamente desinformados e cultuadores da própria ignorância e preguiça.

Como sublinhou a nova baiana niteroiense Baby do Brasil na noite anterior, quando ainda não chovia na Cantareira do Arouche, Valesca é o Brasil que vem de sim – porque quem vem de não não chega, não.

De volta ao desembarque dos bichos no dia do dilúvio. Numa corrida da marquise para um toldo de hotel, a partir de um outro ângulo, entendi de repente por que diabos Valesca  continuava a cantar mesmo sem público: ela NÃO ESTAVA sem público.

Coladinha ao palco, uma massa compacta cantava e pulava e tomava chuva e pedra e pedrada e porrada e choque elétrico com ela debaixo do toró.

O profissionalismo e o agradecimento embevecido da Filósofa Contemporânea a seus pares (igualmente filósofos e contemporâneos) no asfalto é o que separa o Brasil que está nascendo (todo dia) do BraZil que não para de morrer um pouco por dia.

A Virada Cultural, que não irritava tanto quando era (era?) tucana, irrita muito agora que virou (virou?) petista, porque é preciso combater o avanço do Brasil sobre o BraZil. E, sobretudo porque a Vi(ra)da, adaptada para tempos de ruptura dos diques culturais e sociais, é a vida como ela é.

Na vida como ela é, não há maquiagem possível para os índices de violência – e a Polícia Militar passa zunindo, histérica, em furgões e motos hollywoodianas nababescas por entre os (não-)paulistas e os (não-)paulistanos a pé.

Na vida como ela é, um jornal é um blog e uma rede de TV é um encontro de blogueiros.

IMG_5442

Na vida como ela é, misturamos-nos os pretos e os brancos e os homens e as mulheres e os pobres e os ricos e os indígenas e os europeus e os ciganos e todos os seus intermédios. E os ingressos são de graça.

Na vida como ela é, Valesca Popozuda É o Brasil, pront@ para começar o espetáculo e conduzi-lo lindamente até a apoteose. Os tambores já estão rufando.

IMG_5629

(As fotos e o vídeo que acompanham este texto são do goiano interiorano Giovanni Reis. Itamar Assumpção é paulista do interior, Maria Bethânia é baiana do interior e o autor deste texto sou paranaense do interior.)

(P.S. em 20 de maio: o paulistano Giuliano Scandiuzzi avisa, na caixa de comentários, que a linda obra dos Iconorixás é de autoria dele próprio, o VJ Scan. Legal, Giuliano!, só falta agora você contar onde nasceu, pra seguir o padrão do resto do texto…)

Para tim bum, bum, bum

$
0
0

10-modelos-do-fuleco-vetores-copa-mundo-2014-coreldraw-12531-MLB20062004432_032014-OEm 1950, perdemos a Copa do Mundo no Maracanã para o Uruguai e desde então o complexo de vira-latas se transformou em um fantasma nacional. Pois a história nos proporcionou a chance de sepultarmos de vez esse pensamento de que “aqui nada pode dar certo”. Um segundo Mundial no país começa nesta quinta-feira (12 de junho), com Brasil e Croácia no Itaquerão, e os brasileiros dão sinais de que estão maduros para dizer ao mundo de que as coisas não só darão certo, como vão ser do nosso jeito, goste a Fifa ou não.

Este é um site de música brasileira, então vamos argumentar a partir desse ponto de vista. Jerôme Valcke, secretário-geral da Fifa, e Joseph Blatter, seu principal dirigente, não cansam de criticar o Brasil e, ao mesmo tempo, tentaram impor regras sobre tudo. Uma das últimas reveladas foi sobre o direito de uso de palavras durante o evento. Registraram como de uso da entidade a palavra pagode, afirmou O Globo. Mas a Fifa correu para explicar que se tratava sobre a fonte tipográfica batizada com esse nome. Piada de mau gosto, mas alguém acredita que essa medida teria algum efeito prático?

A Fifa tentou impor um disco para o público. A música-tema da Copa é “We Are One”, interpretada pelo rapper Pitbull e pelas cantoras Jennifer Lopez e Claudia Leitte. Representa tudo, menos a riqueza cultural brasileira. A imagem abaixo do clipe já é, em si, reveladora. Clique por conta e risco.

O país que deu ao mundo a bossa nova, a MPB, o samba, o frevo e a tropicália, só para citar gêneros conhecidos dos gringos, viu sua produção musical se resumir no clipe de “We Are One” a uma participação coadjuvante da cantora de axé. O resto do CD tem ainda outras músicas, inclusive as canções “Todos al mesmo ritmo”, interpretada pelo ex-menudo Ricky Martin, e “Dar um Jeito (We Will Find A Way)”, que será interpretada na final do Mundial por Alexandre Pires e pelos guitarrista mexicano Santana, rapper haitiano Wyclef Jean e DJ sueco Avicii.

É bem verdade que a classe artística brasileira contribuiu pouco para enriquecer este Mundial. Fagner se recusou a participar das Fan Fests, espaços criados pela Fifa para assistir aos jogos e a apresentações musicais. Disse ao UOL Esportes que achou “meio ridículo” o posicionamento da organizadora do evento e da Rede Globo, que ofereceram condições ruins para os artistas se apresentarem. Poderia ser um sinal de rara independência, não fosse o fato de que o cearense já foi à Copa do Mundo como convidado de Ricardo Teixeira, ex-homem forte da CBF, conforme lembrou o blog de Juca Kfouri. Ney Matogrosso falou “horrores” sobre os gastos da Copa do Mundo e criticou os governos do PT, em uma entrevista a uma emissora de tevê portuguesa. Foi elogiado por muitos e xingado por outros tantos. Fagner ou Ney Matogrosso falaram o que acharam certo, e que bom que eles possam hoje em dia dizer o que pensam.

Já outros artistas preferiram apoiar a realização do evento no Brasil. Só que nomes como Emicida, Thiaguinho, Fernanda Takai, Paulo Miklos, Samuel Rosa, Gaby Amarantos, Monobloco, Sandy e Luan Santana emprestarem seu talento para empresas privadas lucrarem com o negócio Copa. Outros, como Naldo, Zeca Pagodinho e Carlinhos Brown, criaram composições inéditas com a esperança de se transformarem em hits, coisa que o “We Are One” da Fifa jamais será. Jair Rodrigues nos brindou com “Embaixo da Bandeira”, composição de seu filho, Jair Oliveira, que gravou antes de sua morte:

Tanto os artistas que criticam a Copa do Mundo quanto aqueles que só enxergam cifras e cachês com o evento no país revelam que o Brasil não é mais uma República de bananas. Aqui, em véspera de pontapé inicial, se protesta contra a realização do Mundial e se conquistam direitos (como os sem-teto que darão trégua após Dilma Rousseff sinalizar que atenderá a reivindicações por moradia popular). Nelson Rodrigues dizia: “por ‘complexo de vira-lata’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”. Em meio a esse estado de ebulição social, e também cultural, podemos representar muitas coisas, mas inferiores não.

Futebol e música são duas paixões dos brasileiros, verdadeiras instituições nacionais. “O rádio criou o mito da música popular e do futebol, e foi por eles alimentado e impulsionado”, afirmou Paulo Luna, autor de “No Compasso da Bola”. “Ganhar a vida cantando, jogando futebol ou tocando um instrumento, todas essas atividades deixavam de ser marginalizadas e se tornavam opções mais do que desejáveis.” Em 2014, ainda não se sabe qual será a música da Copa. Certamente não será a que a Fifa quis nos impor e há chances reais de que uma produção marginalizada ocupe esse espaço. Será “Lepo Lepo”, estrondoso sucesso da banda Psirico no carnaval baiano? Ou “País do Futebol”, de MC Guimê, um funk tão amado e odiado pelos brasileiros e que virou tema de novela da Globo?

As próximas semanas dirão. Em 1950, artistas de peso viram suas composições feitas especialmente para o Mundial no Brasil conquistarem a boca dos torcedores nos estádios. Lamartine Babo (1904-1963), autor dos hinos de Flamengo, Vasco, Fluminense e Botafogo, compôs “A Marcha do Scratch Brasileiro”: “Eu sou brasileiro, tu és brasileiro / Muita gente boa brasileira é / Vamos torcer com fé / Em nosso coração / Vamos torcer para o Brasil ser campeão” (…) / Salve, salve / O nosso Estádio Municipal / No campeonato mundial / Salve a nossa bandeira / Verde, ouro e anil / Brasil, Brasil, Brasil”. Já Ary Barroso (1903-1964), autor de “Aquarela do Brasil”, lançou e Linda Batista (1919-1988) gravou “O Brasil Há de Ganhar”: “O Brasil há de ganhar / Para se glorificar / Bota a pelota no gramado / Palmas pro selecionado / Deixa a moçada se espalhar”.

Mas na Copa de 1950 ninguém esquece mesmo de “Touradas em Madri”, uma composição de 1938, de Braguinha. Naquele torneio, a seleção avançava aos poucos, mas foi diante dos espanhóis, ao derrotá-los por 6 a 1 na semifinal, que a torcida começou a cantar em tom de zombaria o seu “hino”: “Eu fui às touradas em Madri/ Para tim bum, bum, bum/ Para tim bum, bum, bum/ E quase não volto mais aqui/ Para ver Peri beijar Ceci/ Para tim bum, bum, bum/ Para tim bum, bum, bum”.

O Brasil perdeu, os brasileiros mergulharam numa tremenda tristeza coletiva e o complexo de vira-latas surgiu dali – para alguns anos depois ser imortalizada por Nelson Rodrigues. Em 2014, com ou sem hit musical, com ou sem caneco, tudo indica que superaremos esse trauma.

É proibido (se) exaltar?

$
0
0

Da paixão correspondida entre a música brasileira e o regime ditatorial do gaúcho Getúlio Vargas, nasceu o Brasil-exaltação:  Heitor Villa-Lobos, “Bachianas Brasileiras”, Ary Barroso, “Aquarela do Brasil”, “Isto Aqui o Que É”, Rádio Nacional, Francisco Alves Dalva de Oliveira, a exaltação à Bahia-berço-do-Brasil…

O ufanismo à la Barroso era bajulatório, barroco, rococó, escalafobético, um tanto rebimbocado da parafuseta. Mas naquele tempo, parece, não era feio, errado, pusilânime ou calhorda exaltar, ufanar, ostentar, afirmar amor ao Brasil.

E, sim, a “era de ouro” dos “cantores do rádio” era feita de ditadura e abdicação e sujeição a Walt Disney e aos Estados Unidos da América do Norte. Carmen Miranda, a carioca que parecia baiana, mas era portuguesa, não gostou da ~ditadura~ e foi viver ~liberdade~ internacional braZileira, interpretando subalternas mexicanas em filmes de Hollywood. Dos píncaros da glória, só voltou morta ao Rio de Janeiro.

carmenmirandad1

O ditador virou presidente democraticamente eleito. A elite cafeeira não gostou da ditadura da democracia. UDN. Carlos Lacerda. Um ET cigano plantou Brasília no coração do Brasil: Juscelino Kubitschek. Eleições, democracia, bossa nova, república rycah de Ipanema y Copacabana.

João Gilberto, único baiano sertanejo feminino entre os garotos machinhos de Ipanema, destoou da fórmula praia-exaltação e, no corridinho das décadas, exaltou à vera a Bahia (e o Rio) e o Brasil: “Samba da Minha Terra” e “Saudade da Bahia” (ambas de Dorival Caymmi), “Na Baixa do Sapateiro” e “Aquarela do Brasil” (de Ary Barroso), “Eu Vim da Bahia” (do pupilo manso-e-rebelde Gilberto Gil), “Bahia com H” (do paulista-de-pseudônimo-anglo Denis Brean), “Canta Brasil” (dos – será? – getulistas David Nasser Alcyr Pires Vermelho), “Adeus América” (de Haroldo Barbosa Geraldo Jaques)…

1964. MPB. 1968. Tropicália. AI-5, 13 de dezembro de 1968 (dia do aniversário de Luiz Gonzaga, eterno legalista admirador de Lampião). Os Estados Unidos da América do Norte invadem a América Latina inteirinha, e o BraSil, e o ufanismo braZilEUA vira a água que sai de todas as torneiras.

Gilberto GilCaetano VelosoGal CostaRogério DupratTorquato NetoMutantesTom Zé, CapinanJúlio Medaglia e a ex-garota-de-Copacabana Nara Leão, entre vários outros, inventam a trans-exaltação. Exaltam para esculhambar, debocham para exaltar: “Tropicália”,  “Soy Loco por Ti, América”, “Marginália II”, “Panis et Circensis”, “Miserere Nobis”, “Parque Industrial”,  “Geleia Geral”,  “Três Caravelas”, “Lindoneia”, “Bat Macumba”, “Hino ao Senhor do Bonfim da Bahia”, “Yes, Nós Temos Bananas” (de Braguinha), “A Voz do Morto”, “São São Paulo”, “Divino, Maravilhoso”, “2001”, “Aquele Abraço”, “Meu Nome É Gal”, “Jimmy, Renda-Se”, “Chão de Estrelas” (de Orestes Barbosa Silvio Caldas)…

Copa do Mundo de 1970. Wilson Simonal, “País Tropical”, Jorge BenPeléJair RodriguesToni Tornado, Tim Maia, black power, Vera Fischer, Arlete Salles, Rede Globo, repressão-power, “pra frente, BraZil!”, “ame-o ou deixe-o”, “eu te amo, meu Brasil, eu te amo”, Os IncríveisDom & Ravel, Ultragaz, O Pasquim, esquerdireitas (des)unidas, avante. Elza Soares (& Garrincha). Dilma Rousseff torce pela seleção brasileira entre uma sessão de tortura e outra.

É proibido torcer pelo BraZil: você é um traidor da pátria assaltada por ditadores (civil-)militares.

É proibido torcer contra o BraSil: você é um comunista comedor de criancinhas do iê-iê-iê.

É proibido fumar, é proibido pisar na grama, e os adaptadores tropicalistas do “é proibido proibir” foram expulsos do BraZSil.

O Festival Internacional da Canção, do aparato Globo-Time-Life, e a Copa do Mundo ensaiam se tornar mensagens brasileiras atiradas em garrafas latino-americanas nos oceanos do mundo. Há tortura (experimente perguntar para a hoje presidenta do BraSil), e o mundo não pode saber, senão cortem-lhe as cabeças! Vão-se as cabeleiras black power de Simonal, Tornado, Erlon Chaves etc. e tal.

A exaltação chega ao ápice com a vitória do BraZil na Copa de 1970, para logo em seguida iniciar seu mais longo e persistente inverno de hibernação. O sinal está fechado para nós, que somos jovens – BelchiorElis Regina, mais uma “Aquarela do Brasil” (misturada com o tema racista “Nega do Cabelo Duro”, de Rubens Soares  com o também-jornalista David Nasser), as “Águas de Março” fechando o verão (até mesmo na Cantareira).

1975, 1976. Fechadas as comportas do BraSZil-exaltação, há quem tente a brecha latino-americana – e a Latino América é toda ditaduras. “América do Sul”, com Ney Matogrosso. “Los Hermanos” e “Gracias a la Vida”, com Elis. “Volver a los 17″, com Milton Nascimento (e Mercedes Sosa). “Soy Latino Americano”, com Zé Rodrix. Não vai durar muito a latino-ostentação.

Vem a reação pós-tropicalista ao “ame-o ou deixe-o”, e a exaltação já não é a um país ou a um continente: “O seu amor, ame-o e deixe-o livre para amar”, “o seu amor, ame-o e deixe-o ir aonde quiser”, “o seu amor, ame-o e deixe-o brincar, correr, cansar, dormir em paz”, cantaram os Doces Bárbaros Caetano, Gal, Gil e Maria Bethânia.

Anos 1980, 1990. O yuppismo norte-americanizado invade as redações moderninhas do eixo Tradição-Família-Propriedade, do eixo Rio-São Paulo. Gravadoras multinacionais, Organizações Globo e Folha de São Paulo manietam a indesejada redemocratização, e deus-nos-livre de qualquer ufanismo nem exaltação: “A gente somos inútil!”. Leonel BrizolaLuiz Inácio Lula da SilvaFernando Collor. Prepara-se o ~consenso~ neoliberal. (“Falsa Baiana”, 1944, de Geraldo Pereira.Fernando Henrique Cardoso.

“Sinais de vida num país vizinhEUA, eu já não ando mais sozinhEURO”, “bichos escrotos, saiam dos esgotos”, “se cheira pra todo lado: que país é este?”, “quem são os ditadores do partido colorado?, o que é democracia ao sul do Equador?, quem são os militares ao sul da cordilheira?, quem são os assassinos dos índios brasileiros?, quem são os estrangeiros que financiam o terror em Parador?”, “mostra tua cara!”. Renato RussoCazuza, Marina LimaTitãsIra!, Paulo RicardoRoger MoreiraLobão: proibidão-exaltação.

É proibido (se) exaltar. É proibido ufanar. Canção de protesto é proibida – além de ser cafona, chata, panfletária. O neoliberalismo jornalístico musical braZilEUA exalta Blur Oasis enquanto massacra o amor-próprio e a auto-exaltação-ostentação, devidamente garroteado pelo ideário político dos chefes mais ~altos~ das redações (e, evidentemente, dos patrões e dos patrõe$ dos patrões).

É proibido protestar contra o BraZil porque é proibido exaltar o BraSil porque é proibido ostentar o orgulho braSileiro porque as canções de protesto de Geraldo Vandré Mano Brown Marcelo Yuka são chatas cafonas fanáticas panfletárias ~esquerdinhas~.

Esmorecida(s), a(s) ditadura(s) faz(em) últimos refúgios nas redações, no Jornal Nacional, na OMB, na OAB, na TFP, no CCC, na monarquia, na sujeição a Washington. As ditaduras encolhem, mas vigoram.

A exaltação migra para o corpo: pagode, lambada, fricote, axé music, forró, brega. Segura o Tchan, amarra o tchan, libera o tchan! Quem não gosta do corpo bom sujeito não é – e, nos nichos de ditadura, é proibido gostar do corpo.

Então Luiz Inácio Lula da Silva, então Gilberto Gil & Juca Ferreira no Mini(mi)stério das Culturas, então Dilma Rousseff.

Então o rap. O funk. O tecnobrega. O forró eletrônico. O lambadão. O sertanejo universitário. O Teatro Mágico. A tchê music. O funk do pré-sal (canção 104 abaixo). O funk-ostentação. O funk brasileiro. (Os MCs assassinados pelo aparato civil-militar paulista.)

Enquanto a MPB é sistematicamente (auto)calada pelas ditaduras midiáticas, o BraSil profundo SE exalta, à margem das desmaiadas gravadoras e das moribundas redações. A Globo se debate para submeter Gaby AmarantosMC Guime – esse jogo não pode ser zero a zero!

O sinal permanece fechado para nós que somos velhos, mas está novamente aberto para nós que somos jovens.

Mas está aberto, ou está fechado, o velho sinal de Paulinho da Viola?

Por que, em plena Copa do Mundo do BraSil, a música braSileira guarda uma mordaça atada à face por entre black blocs e anonymous e rappers brancos norte-americanos vestidos de pula-brejo numa cerimônia junina que sabota a neurociência braSileira?

Por que as arenas de futebol estão invadidas e dominadas e domadas por caras-pálidas fantasiados de verde e amarelo (cores que, na maior parte do tempo, os caras-pálidas odeiam)?

Por que não toca música brasileira na Copa da mais pujante DEMOCRACIA que já tivemos?

Quando foi que, neste longo caminho, nos auto-interditamos de exaltar, de nos exaltar e de (por que não?) exaltar os nossos contra-irmãos?

Junho de 2014, BraSil braZileiro. (Assis Valente, mulato baiano homossexual suicida.) A mídia BraZil braZileuro braZilEUA, após quatro anos ininterruptos de profecia do caos, assassina Mãe Menininha do Gantois e se consuma na recém-falecida Mãe Dinah.

#NãoVaiTerCopa. PSOL. Marina Silva. Bradesco, Natura, Itaú-Kaiowá. Caos aéreo. Caos energético. Caos terrestre. (Caos hídrico ou metroviário, jamais!) Caos subterrâneo. CAAAAAAAOOOOOOOOOOZ BRAZYLEYRO!!!!!! Glauber RochaSérgio Ricardo, Jorge MautnerProfeta Gentileza (gera gentileza).

E o mundo chega ao BraSZil. A mídia braZileura anunciara e garantira que não ia chegar, mas chega, chegou.

Se em 1970 braSileiros se exilavam no chamado ~Primeiro Mundo~ e levavam para fora notícias da tortura braZilEUA, hoje é o mundo que vem aqui nos visitar e contar para nós-braSileiros e eles-braZileiros que o BraSil é UM POUCO diferente daquilo que os anfitriões da festa & $eu$ patrõe$ andaram pintando. Um pouco. Diferente. Ronaldo, fenômeno de vergonha alheia (ou não-alheia, porque NOSSA).

Nas ruas, florestas e praias amazonenses, gaúchas, cariocas e baianas do Bra$il, holandeses, argentinos, ingleses e croatas fazem o carnavalito para bailar. Nós-braSileiros, por enquanto, assistimos de braços meio cruzados oa inesperado, surpreendente, inimaginável espetáculo que nós mesmos proporcionamos. Sem ostentação. Sem exaltação. Sem exaltar. Sem NOS exaltar. Agora antimacunaímicos. Porque vivemos numa democracia plena que (ainda) nos proíbe de (nos) exaltar.

 

P.S. 100% leigo sobre futebol: merece ganhar a Copa do Mundo um país que não se ufana, não se exalta, não se emociona, não se orgulha de si e não mergulha de cabeça nas suas paixões? Particularmente, acho que não merece…

P.S. 50% leigo sobre música: segue abaixo uma radiola sonora (a música) e uma listagem escrita (o jornalismo) de 108 canções ufanistas (a política) de BraSil-exaltação (o esporte) de samba-ostentação (a cultura). Podiam ser 1.008. Ou 10.008. Ou quantas os srs. e sras. compositoras decidam nos presentear dora dora dora em diante.

(P.S. os dois vídeos acima foram incluídos posteriormente, em 8 de julho de 2014, dia da derrota da seleção brasileira para a Alemanha.)

 

1. João GilbertoCaetano Veloso Gilberto Gil, “Aquarela do Brasil” (1980) – samba-exaltação mais eloquente da era Getúlio Vargas, foi composto em 1939 pelo mineiro Ary Barroso e gravado originalmente pelo carioca Francisco Alves – 41 anos mais tarde, ainda na vigência da ditadura civil-militar de 1964, a tropicália e o homem-vertente-baiana da bossa nova aprovavam.

2. Francisco Alves Dalva de OIiveira, “Brasil!” (1939) – o índio civilizado?, e abençoado por Deus??

3. Francisco Alves, “Aquarela do Brasil –  1ª Parte” (1939) – o mulato risoneiro???

4. Francisco Alves, “Aquarela do Brasil –  2ª Parte” (1939) – o Zé Carioca?, o Pato Donald??

5. Jorge Goulart, “Isto Aqui o Que É” (1949) – este Brasil que canta e é feliz, feliz, feliz, um pouco de uma raça que não tem medo de fumaça.

6. Marlene, “Lata d’Água” (1952) – o morro-exaltação: sobe e não se cansa, lá vai Maria (e lá vai Marlene, que a Copa do Brasil de 2014 nos levou e que FAROFAFÁ homenageia com amor e emoção).

1956 Lá Vem o Brasil7. Inezita Barroso, “Lá Vem o Brasil” (1956) – caipira e interiorano, o BraSil da paulista Inezita é dos tamoios, de pai joão, da mãe preta, das violas, de Lampião, do candomblé, do samba, do braseiro das suas fogueiras, das noites bonitas de junho…

8. Dorival Caymmi, “Samba da Minha Terra” (1957) – quem não gosta do Brasil bom sujeito não é: é ruim da cabeça, ou é doente do pé.

9. Angela Maria, “Canta, Brasil” (1957) – a exaltação getulista de Alcyr Pires Vermelho e David Nasser, toda exacerbada, seus ~ritmos bárbaros~, suas reservas de prantos, sua voz enternecida, sua ~alegria~ macunaímica.

1957 Eu Vou pra Maracangalha10. Dorival Caymmi, “Saudade da Bahia” (1957) – porque Bahia é um pedacinho de Brasil, iaiá – o pedaço mais orgulhoso de si?

11. Blecaute, “A Voz do Morro” (1959) – Juscelino Kubitschek, Brasília, Zé Keti: eu sou o samBrasil, a voz do morro sou eu mesmo, sim, senhor, quero mostrar ao mundo que tenho valor.

12. Luiz Gonzaga, “Marcha da Petrobras” (1959) – nove anos antes de se tornar sustentador disciplinado da ditadura civil-militar, Gonzagão era um nacional-getulista petrolífero: “Brasil, eu Brasil, tu vais prosperar, tu vai, vais crescer ainda mais com a Petrobrás”.

13. Gilberto Gil, “Povo Petroleiro” (1962) – desconhecido, anônimo, pré-tropicalista, pré-MPB: Gilberto Gil petroleiro, está jorrando petróleo das terras da nossa Bahia!

14. Inezita Barroso, “Hino à Bandeira Brasileira” (1964) – começa a ditadura civil-brasileira do dia da mentira, sob o lindo pendão da ~esperança~,  símbolo ~augusto da paz~.

15. Doris Monteiro, “Deus Brasileiro” (1964) – um ufanismo bossa-novista, na aurora de nova ditadura, da clave do jovem Marcos Valle: quem nasceu na minha terra nem sabe o que é guerra.

16. Elizeth Cardoso, “400 Anos de Samba” (1965) – escreve-se no asfalto a história do Rio de Janeiro – e do Brasil.

17. Gal Costa, “Eu Vim da Bahia” (1965) – do Gilberto Gil pós-petroleiro, pré-tropicalista, sempre baianista: eu vim da Bahia contar tanta coisa bonita que tem.

1965 Rancho da Praça Onze18. Dalva de Oliveira, “A Bahia Te Espera” (1965) – Bahia-exaltação, da magia, dos feitiços, da fé, dos saveiros, do candomblé, do vatapá, de Iemanjá – ela te espera.

1966 1 Artista de Circo19. Tonico & Tinoco, “Percorrendo Meu Brasil” (1966) – o Brasil tem Rio Grande, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais…? Tem, sim, sinhô.

20. Paulo Diniz, “Brasil, Brasa, Braseiro” (1967) – samba-soul-exaltação: salve o povo brasileiro!, gente que nem formigueiro!

21. Caetano Veloso, “Soy Loco por Ti, América” (1968) – a manhã tropicalista se inicia, tendo como colores la espuma blanca de Latino América y el cielo como bandera.

22. Sidney Miller, “História do Brasil?” (1968) – o velho Lamartine Babo e a antitropicália, do guarani ao guaraná: quem foi que inventou o BraZil?

1968 Tropicália ou Panis et Circensis23. Caetano VelosoGilberto Gil, Mutantes Gal Costa, “Hino ao Senhor do Bonfim da Bahia” (1968) – dessa sagrada colina, mansão da misericórdia, dai-nos a graça divina da justiça e da concórdia – oi?

24. Noriel Vilela, “Saudosa Bahia” (1969) – são tempos de exílio, está fazendo três semanas que eu saí de lá.

25. Gilberto Gil, “Aquele Abraço” (1969) – ora, vamo-nos embora, mas o Rio de Janeiro continua lindo.

1969 Jorge Ben26. Jorge Ben, “País Tropical” (1969) – Brasil, eu fico!

27. Wilson Simonal, “Aqui É o País do Futebol” (1970) – Brasil está vazio na tarde de domingo, né?

28. Tom Jobim, “Brazil” (1970) – do exílio cultural, nosso branquelo inzoneiro.

29. Milton Nascimento, “Para Lennon McCartney” (1970) – por que vocês não sabem do ~lixo~ brasileiro?

1970 Quero Voltar pra Bahia30. Paulo Diniz, “Quero Voltar pra Bahia” (1970) – I don’t want to stay here, I wanna to go back to Brazil.

31. Mutantes, “Chão de Estrelas” (1970) – morro-exaltação de Orestes Barbosa e Silvio Caldas, paulistano-tropicalizada.

32. Jair Rodrigues, “Martim Cererê” (1971) – o coração de Jair não aguentou esperar pela Copa de 2014, vir cá Brasil ler sua mão, que grande destino reservaram pra você?… (com as mais profundas homenagens de FAROFAFÁ a São Jair).

33. Baden Powell, “Brasiliana” (1971) – e quem disse que são necessárias palavras para ufanar, São Baden?

34. Vinicius de MoraesMarília Medalha Toquinho, “A Bênção, Bahia” (1971) – os afro-samba-exaltação!!!, nós viemos dormir no colinho de Iemanjá.

35. Tim Maia, “Meu País” (1971) – de volta dos Estados Unidos da América, onde amargou cana, Tim dá um passa-moleque encabulado na viralatagem: sim, bem, sei que aprendi muito no seu país, porém no meu país senti tudo o que quis.

36. Jorge Ben, “Porque É Proibido Pisar na Grama” (1971) – Ben-exaltação, acordado com uma vontade de abraçar o mundo no colo do Brasil.

1971 Terra Boa37. Dom & Ravel, “Terra Boa” (1971) – terra boa, terra boa, tá nascendo tudo – e a esquerda brasileira não perdoará dois ~caipiras~ do fundão do apoio popular à ditadura de direita.

38. Elis Regina, “Exaltação a Tiradentes” (1971) – em nova onda de samba-exaltação, a MPB revive os enredos ufanistas das décadas anteriores, até para revalidar nas barbas de Tiradentes as barbas de Jesus Cristo.

39. Dom & Ravel, “Você Também É Responsável” (1971) – ou você NÃO é, NUNCA, responsável por NADA que seu país cria e destrói?

40. Jorge Ben, “Salve América” (1972) – salve América – América Latina, SOUTH América. Permaneceu inédita em 1972…

1972 2 Sangue, Suor e Raça41. Elza Soares Roberto Ribeiro, “Swing Negrão/ Brasil Pandeiro/ O Samba Agora Vai/ É com Esse Que Eu Vou” (1972) – suingue do negrão brasileiro para o tio Sam tocar pandeiro e o mundo sambar: o litoral.

1972 2 Índia42. Cascatinha & Inhana, “Relíquias Sertanejas” (1972) – ó meu sertão do meu país, aqui na roça vivo alegre e sou feliz: o interior.

43. Roberto Carlos, “A Montanha” (1972) – a exaltação a um deus, já que anda difícil exaltar um país…

44. Dercy Gonçalves, “A Perereca da Vizinha” (1964) – não tem nada a ver com a cronologia, nem com o tema, mas, sei lá, é Copa, deu vontade de colocar aqui. Afinal, a vizinha é boa-praça, a vizinha é camarada.

45. Wilson Simonal, “Saravá” (1972) – Para não falar que não falamos de quando quisermos falar com Deus: Salve o povo de aruanda, a terra de nagô, muita paz e amor na Terra, o reino do senhor!

46. Ronnie Von, “Cavaleiro de Aruanda” (1972) – quem é esse cacique?

47. Antonio Marcos, “O Homem de Nazareth” (1973) – ou vamos seguir com fé tudo que nos ensinou o… Brasil?

48. Raul Seixas, “Al Capone” (1973) – quem é que te orienta, senhores não-samba-exaltadores?

49. Synval Silva, “Brasil, Explosão de Progresso” (1973) – Brasil, gigante do universo, explosão de progresso, passado de glória, lutas, amor, vitória, união das raças, miscigenação…

50. Pessoal do Ceará, “Terral” (1973) – Ednardo e a nata do lixo, o luxo da aldeia, o Ceará.

51. Cartola, “Alvorada” (1974) – Mangueira-exaltação, ninguém chora, não há tristeza, não existe dissabor.

1974 A Senha do Novo Portugal52. Nara Leão, “Grandola, Vila Morena” (1974) – Nara, a bossa, a fossa, a Coroa Portuguesa, o Brasil, a nossa imensa dor.

1974 Brasil com _S_53. Rogério Duprat, “Isto Aqui o Que É” (1974) – o maestro paulistropicalista, exilado dos companheiros de invenção, pós-exaltador num disco denominado Brasil com S.

54. Mano Décio da Viola, “Heróis da Liberdade” (1974) – um samba-exaltação composto com Silas de Oliveira para as avenidas?, ou um dos maiores libelos antiescravagistas da história da humanidade?

55. Ademilde Fonseca, “Brasileirinho” (1975) – brasileirinho Waldir Azevedo, um desacato quando chega no salão global.

1975 Volume 256. Baiano & Os Novos Caetanos, “Ameriqueiro” (1975) – Chico Anysio Arnaud Rodrigues, samba-rock, samba-soul & forró-samba: não sou americano com meu pouco dinheiro eu sou brasiliano e se não me engano sou ameriqueiro.

57. Martinho da Vila, “Aquarela Brasileira” (1975) – o Brasil-exaltação tem Amazonas, Pará, Marajó, Ceará, Tupã, Bahia, Pernambuco…? – tem, sim, sinhô Silas de Oliveira!

58. Ney Matogrosso, “América do Sul” (1975) – desperta, América Brasileira!

59. Zé Rodrix, “Soy Latino Americano” (1976) – muita gente me censura e acha que eu estou errado.

1976 1 Tim Maia Racional e Coro Racional60. Tim Maia Racional, “Brasil Racional” (1976) – nada de fuzil, nada de canhão – uma marchinha-exaltação para o Universo em Desencanto?! #SóNoBraZil! 

1976 Wando61. Wando, “O Rei” (1976) – pré-~brega~, Wando cerze o épico-exaltação do rei que se despe e vira passageiro de trem.

62. Joyce, “Nacional Kid” (1976) – ele é um rapaz brasileiro, mas sua identidade secreta braZileira ficou inédita em 1976…

63. Maria BethâniaGilberto GilCaetano Veloso As Gatas, “As Ayabás” (1976) – as orixás e a mulher-exaltação: nem um outro som no ar, eu agora vou bater para todas as moças.

64. Maria Bethânia, “A Bahia Te Espera” (1976) – e para mãe Dalva também.

65. Benito di Paula, “Tudo Está no Seu Lugar” (1976) – no Brasil braZileiro do ~milagre~, tudo está no seu lugar, graças ao(s) Rei(s).

66. Novos Baianos, “Ninguém Segura Este País” (1978) – por um Gilberto Gil pré-pós-ufanista: é moda dizer que baiano está por cima, e entra ano e sai ano e mais um carnaval de lascar o cano – mas e o país?

67. Bebeto, “Céu Aberto Colorido” (1978) – que felicidade, que grande alegria por eu ter nascido no país de maravilha.

68. Edu Lobo, “O Trenzinho do Caipira” (1978) – nem bossa, nem MPB, muito menos tropicália, Edu revalida a exaltação getulista de Heitor Villa-Lobos pelos trilhos moídos dos interiores.

69. Elizeth Cardoso, “Bachianas Brasileiras Nº 5 – 1ª Parte da Ária (Cantilena)” (1979) – Villa-Lobos, David Nasser e este céu vazio de esperança…

1979 Era uma Vez um Homem e o Seu Tempo70. Belchior, “Brasileiramente Linda” (1979) – linda mente brasileira, oh yes.

71. Elis Regina, “O Bêbado e a Equilibrista” (1979) – anistia-exaltação, enquanto a tarde ditatorial começa a cair e nos leva Elis.

72. Alcione, “Dia de Graça” (1979) – avenida-exaltação, pela pena poética do militar Candeia.

1980 Brasil Mestiço73. Clara Nunes, “Brasil Mestiço Santuário da Fé” (1980) – exaltação amarga de Paulo César Pinheiro, desde o tempo da senzala enquanto mais chicote estala e o povo se encurrala.

74. Martinho da Vila, “O Grande Presidente” (1980) – presidente-exaltação: Getúlio Vargas, estadista, idealista, realizador, grande presidente de valor. Pode, Arnaldo Antunes?

1980 Luiz Gonzaga75. Luiz Gonzaga, “Sou do Banco” (1980) – eu sou do banco, do banco, do banco, mas de qual banco? Do Banco do Brasil. (Do mesmo compacto duplo que conteve a versão gonzaguiana de “Para Não Dizer Que Não Falei das Flores (Caminhando)”, de Geraldo Vandré.)

1982 Fruto do Suor76. Raíces de América, “Soy Loco por Ti, América” (1982) – desperta, América Mais-Que-Brasileira!

77. Rita Lee João Gilberto, “Brazil com S” (1982) – porque terra linda assim não há, com tico-ticos no fubá, quem te conhece não esquece.

78. Dori Caymmi, “Samba do Carioca” (1983) – vamos, brasileiro, sai do teu sono devagar…

79. Elza Soares, “Heróis da Liberdade” (1985) – o mais lindo libelo antiescravagista, na mais linda voz pró-liberdade: exaltação, por todos os poros.

1984 Gagabirô80. João Bosco, “Jeitinho Brasileiro” (1984) – porque o negócio é levar vantagem em tudo, mora?

81. Leci Brandão, “Isso É Fundo de Quintal” (1985) – quintal-exaltação: é pagode pra valer!

82. João Bosco, “Da África à Sapucaí” (1986) – lirismo África-Brasil: exaltação.

1986 João Gilberto Live at the 19th Montreux Jazz Festival83. João Gilberto, “Adeus América” (1986) – para Carmen Miranda, que só pôde voltar morta.

84. Olodum, “Revolta Olodum” (1989) – retirante, ruralista, lavrador: revolta-exaltação?

1989 Roberto Carlos85. Roberto Carlos, “Amazônia” (1989) – a ascensão de Fernando Collor, o índio capixaba e a Amazônia, insônia (oi?) do mundo.

86. Daniela Mercury, “Menino do Pelô” (1991) – todo menino do Pelô sabe exaltar o tambor.

87. Grupo Raça, “Da África à Sapucaí” (1991) – o lirismo de João Bosco de Minas Gerais, em pagode-exaltação.

88. Gal Costa, “Tropicália” (1992) – já sob o crepúsculo de Fernando Collor, a manhã tropical se irradia.

1992 Presidente Caô Caô89. Bezerra da Silva, “Eu Sou Favela” (1992) – a favela-exaltação se levanta: nunca foi reduto de marginal!!! – e essa verdade não sai no jornal.

90. Cidinho & Doca, “Rap da Felicidade” (1993) – o funk-exaltação!

1995 Da Lata91. Fernanda Abreu, “Brasil É o País do Suingue” (1994) – e deixa solta essa bundinha.

92. Grupo Fundo de Quintal, “Brasil Nagô” (1994) – se mandarem me chamar eu vou, sou brasileiro, sou nação nagô.

93. Chico César, “Mama África” (1995) – mãe-exaltação, solteira, mamadeireira, empacotadeira nas Casas Bahia.

94. Daúde, “Vida Sertaneja” (1995) – sertão-exaltação: modernidade.

1998 Moro no Brasil95. Farofa Carioca, “Moro no Brasil” (1998) – Seu Jorge e um novo modelo de amor-próprio: moro no Brasil, não sei se moro muito bem ou muito mal, só sei que agora faço parte do país: a ~beleza~ que nos perdoe, mas a inteligência é fundamental.

96. SNJ, “Se Tu Lutas Tu Conquistas” (2000) – rap-exaltação do Somos Nós a Justiça: as periferias se erguem.

2002 Nada Como um Dia Após o Outro Dia97. Racionais MC’s, “Negro Drama” (2002) – sente o drama, sente um novo caminho que se abre para o Brasil na esquina entre 2002 e 2003.

2005 Sujeito Homem 298. Rappin’ Hood e Arlindo Cruz, “Muito Longe Daqui” (2005) – rap-pagode-favela-exaltação: numa cidade muito longe, muito longe daqui, que tem favelas que parecem as favelas daqui…

99. Matéria Rima, “De Rolê pelo País” (2005) – rap-forró-exaltação: minha vida é andar por este país…

100. Banda Fruto Sensual, “Coisas de Santa Izabel” (2010) – tecnobrega-exaltação às coisas das periferias paraenses.

101. Gang do Eletro, “Panamericano” (2010) – meu amigo americano chegou de Nova York, veio conhecer aparelhagem do norte.

102. Aviões do Forró, “Pegadinha do Inglês” (2010) – eu vou cantar pra tu, girl beautiful, I love you, I love you: boy, te peguei na pegadinha do inglês, sou brasileira, não sou americana. 3-)

2011 Michel na Balada103. Michel Teló, “Humilde Residência” (2011) – é humilde, mas é de responsa: bem-vindos à nossa residência pra gente fazer Copa do Mundo, sras. & srs. gringos.

104. MC Sabrina, MC Suzy, Andrezinho Shock, Martinho, Hermes Filho e Mag, “Pré-Sal” (2010) – tu acha certo usufluir do que não é seu?, vocês tiveram suas riquezas, ninguém se meteu.

105. Leandro Lehart, “Do Iorubá ao Reino de Oyó” (2011) – samba-exaltação paulistano de avenida: os orixás, o calor, a nobreza, a tradição contrariada do ~amor~.

2012 Mixturada Brasileira - Vol. 01106. Carlinhos Brown Ítala Marques, “Seu Cabelo É Bom” (2012) – cabelo-exaltação: respeitem nossos cabelos, brancos!

107. MC Guime Emicida, “País do Futebol” (2013) – até gringo exaltou!

108. Caetano VelosoGal CostaGilberto Gil e Maria Bethânia, “O Seu Amor” (1976) – os Doces Bárbaros, e basta de “ame-o ou deixe-o”: o seu amor. ame-o. e deixe-o. livre. para ir. onde. quiser.

1976 Doces Bárbaros

PTfobia

$
0
0

Este amado espaço livre FAROFAFÁ padeceu pelo fato de eu ter me embrenhado numa inédita aventura neste 2014. Devagar nós vamos voltando.

Desde fevereiro, estive trabalhando como repórter-apresentador-etc. na campanha político-eleitoral do bravo e querido Alexandre Padilha, que foi candidato petista ao governo do estado de Tucanistão. Em 2012 já havia exercido papel parecido na campanha do querido e bravo Fernando Haddad, hoje prefeito excêntrico da capital de Tucanistão – mas foi por muito menos tempo e sem a característica principal da experiência que terminou agora, de acompanhar a agenda do candidato no dia-a-dia, ao ar livre, no chão, no asfalto, na vida real.

A experiência de agora me propiciou o susto de sair de mais um dos muitos armários de que tenho saído ao longo da vida. Sempre fui petista, voto nos candidatos majoritários do Partido dos Trabalhadores desde 1989, em várias oportunidades declarei isso publicamente. Mas a situação ficava meio malparada, principalmente durante os longos dez anos, de 1995 a 2004, em que trabalhei dentro de um dos órgãos para-oficiais do PSDB, a Folha de São Paulo. Demorei para entender como era difícil trabalhar ao bel-prazer do Partido dos Patrões e fingindo não enxergar isso nem ter posição sobre nada (a não ser música & a vida dos outros) e morrendo de medo sequer de trocar impressões políticas e votos com colegas de redação. As masmorras de Tucanistão guardam silêncios ensurdecedores.

Nestes oito meses de Padilha, foi entremente enriquecedor trabalhar diretamente com o PT, sem intermediários, sem falsos apartidários, sem patrões tucanos que fingem votar nulo (tendo sob seu cabresto toneladas de votos) e sem escamoteações de neutralidade, imparcialidade e nobreza ética.

Como todos os seres humanos, jornalistas também temos lado. Não podermos expressá-lo é uma violência cometida contra nós por quem nos explora expelindo pela boca conceitos-ratoeira de “liberdade de expressão” – isso quando a violência não é cometida por nós mesmos, em nossa funda submissão, subserviência, covardia e falta de amor-próprio.

O aprendizado nas paralelas do PT foi intenso e avassalador, em muitos e muitos e muitos aspectos. A sensação de virar adulto (só) aos 46 anos é meio bizarra pelo adiantado da hora, mas dá um calor danado por dentro. É bom.

Abre parênteses.

Você que é farofafeiro por razões musicais provavelmente não viu nem percebeu, mas a experiência com a política me manteve estritamente próximo da música brasileira. Talvez, pasme, até tenha estreitado meus laços com ela, essa minha grande paixão (embora não a maior de todas, cada vez menos a maior de todas). Viajando pelo estado de São Paulo entre fevereiro e maio, cento e tantas cidades lindas e surpreendentes, senti a necessidade de conhecer e reconhecer a origem musical de minha mãe gaúcha e de meu pai catarinense. Desde então quase só faço ouvir canções caipiras e sertanejas.

Do repertório limitadíssimo que eu possuía, dos maravilhosos Cascatinha & Inhana e de Inezita Barroso, galguei novas montanhas de conhecimento. O processo é penoso, mas rendeu paixões à primeira vista por gente extraordinária como Tião CarreiroJararacaPalmeira e Biá (ah, essa “Boneca Cobiçada” que eu conhecia e desgostava na versão sujeito-estranho de Ney Matogrosso), o gauchão Teixeirinha, tantos e tantos outros.

Fecha parênteses.

O aprendizado foi intenso e avassalador, em muitos e muitos e muitos e muitos aspectos, mas em um aspecto em particular.

Cercado por petistas e simpatizantes durante grande parte do meu tempo desde fevereiro, eu pela primeira vez aprendi no dia a dia o que é a PTfobia. A PTfobia existe e é uma doença d’alma, prima chegada do racismo, da misoginia, da homofobia, da xenofobia, do ódio aos nordestinos, da repulsa por idosos, da gordofobia… – de todas as fobias, enfim.

(Conheci uma vez uma moça que tinha fobia de bolinhas, repara só que exótico: ela era incapaz de ingerir alimentos esféricos do tipo ervilha, grão-de-bico, gema de ovo, couve-de-bruxelas; o que, cacilda?, o que leva uma pessoa a desenvolver fobia pânica por bolinhas?).

Pois então, a materialização da PTfobia foi se dando em mim à medida que eu convivia com o justo oposto da PTfobia. Conviver de perto com petistas e simpatizantes me fez crescer 502 anos em oito meses. Fui me adaptando a essa tomada de consciência conforme ia convivendo com petistas e simpatizantes como estes que lhe dizem olá nas seguintes fotografias (o texto prossegue para lá das fotos).

IMG_0196

IMG_2171

IMG_2948

IMG_3259

IMG_3475

IMG_1411

IMG_5242

IMG_2195

IMG_2200

IMG_5798

IMG_3192

IMG_3361

IMG_3526

IMG_4185

IMG_4314

IMG_4216

IMG_4269

IMG_6988

IMG_6990

IMG_7012

IMG_4558

IMG_4556

IMG_7475

IMG_7508

IMG_4815

IMG_4821

IMG_4827

IMG_7562

IMG_5098

IMG_5117\

IMG_5125

IMG_5115

IMG_5136

IMG_7823

IMG_8006

IMG_0549

IMG_0644

IMG_8308

IMG_0934

Os rostos acima, em sua esmagadora maioria, são diariamente ocultados e sonegados de nós pela mídia braZileira tradicional, conservadora, patronal, militante à direita, europófila, diversidadofóbica (prega a politicofobia, mas sempre faz campanha e vota no lado mais corrupto?, sei, sei, sei). Se mostrados, são invariavelmente retratados de modo subserviente ou, pior, em contexto de marginalização, estigmatização, criminalização: as venenosas travestis, os perigosos sem-terra, as mães-de-santo, os trabalhadores sindicalizados comedores de criancinhas capitalistas. As fobias, todas elas & outras mais.

Foi no percurso deste ano de 2014 que entendi, finalmente, que a PTfobia viceja escondida atrás das grades de ferro, dos vidros blindados, dos fundos de naftalina dos armários. Existe e é prima-irmã das fobias todas.

Você pode não ser gay, negra, gordo, mulher ou nordestino – mas, seja você quem for, você DEVE RESPEITO a TODO MUNDO que não é como você é.

Você pode não votar no PT, você pode votar em quem você quiser, você pode (se) anular – mas você DEVE respeito às trabalhadoras e aos trabalhadores que são pilares deste BraSil e à obra colossal que o Partido das Trabalhadoras tem conduzido há (pelo menos) 12 anos neste BraSil colossal que está expresso em cada uma das fotografias acima. De 2002 para cá, o BraSil mudou 502 anos, e só o padecimento de uma dolorosa doença poderia economizá-lo(a) de entender, reconhecer e respeitar esse simples fato.

A bem da redução do ódio, que é filho passivo-agressivo da fobia, seria importante que você soubesse que sua PTfobia é uma doença, e passível de tratamento – como são, de resto, as doenças e fobias, até mesmo, quem diria?, a inexplicável fobia por bolinhas.

Você pode votar em quem quiser, pode até votar na Fobia em pessoa. Só é preciso, se o estiver fazendo, que nós saibamos disso – sobretudo, seria necessário e saudável que VOCÊ soubesse que está votando na Sua Fobia em Pessoa, e parasse de se fazer de vítima, de falso moralista, de indignada de fachada com corruptos selecionados, de gente inofensiva que não faz mal a ninguém e não tem nada a ver com tudo isto que está aí.

O armário é um lugar que pode até parecer aconchegante e confortável, mas não é – aqui fora o ar é bem mais puro. Por ora, fiquemos com Tião Carreiro & Pardinho. FAROFAFÁ vem voltando devagarinho.

Fernando Brant, o homem da sucursal

$
0
0

O lugar ocupado por Fernando Brant (1946-2015) na música popular brasileira é bem maior do que permitem reconhecer os olvidos de anos recentes. Só para citar alguns totens excluídos da coleção abaixo, Brant escreveu os versos de “Outubro” (1967), “Saídas e Bandeiras” (1972), “Credo” (1978), “Canção da América” (1980), “Nos Bailes da Vida” (1981), “Notícias do Brasil (Os Pássaros Trazem)” (1981), “Encontros e Despedidas” (1981), “Menestrel das Alagoas” (1983)…

Talvez a sequência abaixo dê pistas sobre o que foi feito de Vera (Cruz), nos desencontros entre o inventor das letras de algumas das maiores canções de Milton Nascimento e a pátria que o pariu.

1. Elis Regina, “Travessia” (1967) – Tudo começou com Elis, a gaúcha que o carioca Milton Nascimento reputa como sua descobridora (e também, portanto, do letrista mineiro Fernando). A canção de festival que apresentou Milton ao mundo foi imediatamente gravada pela jovem madrinha. “Solto a voz nas estradas”, dizia a letra, preparando o mundo para a voz etérea do músico e para o pendor cigano do letrista.

1968 2 MPB 42. MPB 4, “Sentinela” (1968) – O barroco e o catolicismo mineiros. A morte. A morte sob tortura, talvez, “no corpo deste irmão que já se foi”.

3. Wilson Simonal, “Aqui É o País do Futebol” (1970) – Quando ainda existia a pilantragem e ainda não estava denominada a etiqueta “clube da esquina”, e minutos antes de virar bode expiatório máximo para a esquerda (e para a direita) brasileira(s), Simonal cantou esse hino futebolístico com letra de de protesto ambíguo de Brant. Era a Copa de 1970, cenário de guerra entre inimigos e apoiadores da ditadura, entre o país tropical abençoado por Deus e os porões da tortura, entre a música brasileira negra e a branquidão internacionalista da Rede Globo de Televisão. Brant andava pelas cordas bambas.

61G2qkYcMJL._SY355_4. Luiz Eça y la Família Sagrada, “O Homem da Sucursal/ Barravento” (1970) – Ainda em pique de Copa e futebol, “O Homem da Sucursal” seduziu o bossa-novista Luiz Eça, artífice do Tamba Trio, que ajudou a mundializar o tema do documentário Tostão, a Fera de Ouro, lado a lado com a glauberiana “Barravento”, de Sérgio Ricardo.

5. Milton Nascimento, “Para Lennon e McCartney” (1970) – John Lennon Paul McCartney não sabiam do lixo ocidental, neste anti-hino composto com os irmãos Lô Borges Márcio Borges, que temperava o eterno complexo de vira-latas com um desejo imenso de orgulho de ser braSileiros com S maiúsculo: “Eu sou da América do Sul/ sei, vocês não vão saber/ mas agora sou caubói/ sou do ouro, eu sou vocês/ sou do mundo, sou Minas Gerais”.

1970 Som ImaginaÃÅrio6. Som Imaginário, “Feira Moderna” (1970) – Nesta parceria de Brant com Beto Guedes, a letra é barroca em linhagem mineira, não em linhagem baiana-tropicalista. Versos como “feira moderna, um convite sensual/ ó, telefonista, a palavra já morreu/ meu coração é novo/ e eu nem li o jornal” pouco dizem aos ouvidos entupidos de MPB tropicalista, mas a irmandade foi percebida por Gal Costa, que em 1971 levou o grupo que acompanhava Milton para a base do mítico show Fatal.

evinha 37. Evinha, “Feira Moderna” (1971) – Tal como fez a tropicália, também o clube da esquina paquerou a pilantragem de Simonal e fez sexo com ela – aqui, na voz aveludada-gelatinosa da sensacional ex-cantora mirim do jovem-guardista Trio Esperança, aqui adentrando fase adulta apadrinhada por Simonal. O lado iê-iê-iê de Brant eclodiria de fato anos depois, em ambiente não-musical, quando ele se tornasse diretor visível que protegia eminências pardas do “lixo ocidental” do sistema Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição).

1972 Cicatrizes8. MPB 4, “San Vicente” (1972) – Versão do quarteto vocal que acompanhou Chico Buarque em “Roda Viva” para a dramática canção que, na voz de Milton, tornou-se um dos mais sólidos monumentos do álbum semi-coletivo Clube da Esquina (1972). “Coração americano/ acordei de um sonho estranho/ um gosto vidro e corte/ um sabor de chocolate/ no corpo e na cidade/ um sabor de vida e morte/ coração americano/ um sabor de vidro e corte”, diz a letra sonho-acordada entre corpos negros, enquanto anoitece.

1976 Clementina de Jesus9. Clementina de Jesus, “Cinco Cantos de Trabalho” (1976) -“Os Escravos de Jó” é a composição de Milton e Fernando que abre e fecha alas para o “Ensaboa” de Cartola e os cantos de trabalho de domínio público “Alegria do Carreiro”, “Peixeira Catita, e “Atividade no abano”, compilados pela matriarca. No contexto futebolístico da Copa de 1970, o tema era um canto de trabalho operário, urbano, chamado “O Homem da Sucursal” (ver item 4). Três anos depois, voltou como “Os Escravos de Jó”, tema de início do mítico álbum Milagre dos Peixes (1973), transformado em canto de escravos pela voz de Clementina e pelas adaptações na letra de Brant (“saio do trabalho/ volto para casa/ não lembro de canseira maior/ em tudo é o mesmo suor”). Nos caminhos intrincados da parceria Milton-Fernando, voltaria em 1977 como “Caxangá” (ver item 23), na voz de Elis.

Elis+197410. Elis Regina, “Conversando no Bar” (1974) – Também denominada “Saudades dos Aviões da Panair” (na versão de Milton), traz letra de cornucópia tropical-mineirista em que cabem sobe-e-desce ladeira de bonde, motorneiro, orquestra, casos da campanha da Itália, as asas dos aviões da finada Panair, sustos, padres, pecados, medo, memória, fala oculta, mesa de bar. E mudanças. E a perda total de chão.

1975-Gotas-dagua-1-300x30011. Simone, “Idolatrada” (1975) – A cantora baiana é a primeira a gravar a lavra grande das canções de mulheres, femininas, feministas de Milton e Fernando – integrada também por “Maria Três Filhos” (1970), “Maria Solidária” (1977), “Maria, Maria” (1978)…

12. Nana Caymmi, “Ponta de Areia” (1975) – Com a lamúria pela estrada de ferro que ligava Minas ao mar, mas “mandaram arrancar”, a canção de protesto passava pela fresta da janela que a ditadura civil-militar trancou em 1968.

1977 A PaÃÅgina do RelaÃÇmpago EleÃÅtrico13. Beto Guedes, “Maria Solidária” (1977) – Antes da forte versão de Fafá de Belém (em 1978), a aguda, femininíssima, do conterrâneo Beto.

1977 AÃÅgua14. Fafá de Belém, “Raça” (1977) – O mais explícito canto racial de Milton (e Fernando) nasceu em 1976, na voz do dono – e virou mulher a seguir, com a potência da paraense Fafá.

15. Simone, “Povo da Raça Brasil” (1979) – Canto racial, canto de trabalho, canto de escravos: “Ponha a mão na mágoa/ ponha a mão no couro/ ponha a mão na massa pra fazer o pão”.

16. Milton Nascimento Nana Caymmi, “Sentinela” (1980) – A mineira Nana visita o sublime ao reinterpretar, com o dono da voz, o tema barroco e católico de carpideiras mineiras de 1969.

1522290

1980 Dengo17. Zezé Motta, “Bola de Meia, Bola de Gude” (1980) – A cantora negra fluminense também tentou ecoar a voz da raça, mas ficou mais popular a versão em quatro vozes masculinas do grupo clube-da-esquinista 14 Bis.

18. Fafá de Belém, “Bicho Homem” (1981) – “O meu canto chuta o traseiro do ditador”, escreveu Brant no amanhecer pós-anistia.

1983 ...Pois EÃÅ19. Ney Matogrosso, “Coração Civil” (1983) – Outro tema possível após o início de abrandamento da ditadura, quando ainda se acreditava que os civis de 1964 tivessem princípios mais nobres que seus pares militares. O clamor pelo fim do regime de exceção hoje soa óbvio, apesar de implícito. Filho de militar, o sul-mato-grossense Ney encarnou o coração civil de Brant.

20. Pena Branca & Xavantino, “Chaleira do Alto da Poeir”a (1995) – De meados dos anos 1980 em diante, a parceria Nascimento-Brant feneceu. Restaram temas esparsos, como esse em parceria com Tavinho Moura, e a atividade corporativa como defensor dos direitos de autores no sistema Ecad. Perdido da voz de Milton, o discurso de Fernando foi se tornando o contrário do que fora nas pautas das canções.

21. Lô Borges, “Paisagem na Janela” (2001) – “Da janela lateral do quarto de dormir”, a versão do coautor e conterrâneo Lô Borges para o tema histórico interpretado por Beto Guedes no Clube da Esquina de 1972. (Correção enviada por Pablo Castro: embora a versão de Beto Guedes seja bastante popular, a original, de 1972, já era interpretada por Lô.)

2002 Flora Purim Sings Milton Nascimento22. Flora Purim, “Maria Três Filhos” (2002) – No espetacular Flora Purim Sings Milton Nascimento, majoritariamente dedicado aos anos duros do clube da esquina, a carioca cigana migrante estadunidense Flora mundializa o que já deixou de ser de Minas e tece a mais épica das versões para a primeira das Marias de Milton (e Fernando): “Negra voz de velha só. numa igreja interio/ me falando de seu tempo/ conta a idade, conta o que restou”.

2010 Bom Tempo23. Sergio Mendes Milton Nascimento, “Caxangá” (2010) – “O Homem da Sucursal”, depois “Os Escravos de Jó”, depois “Caxangá”: “Veja bem, meu patrão/ como pode ser bom?/ você trabalharia no sol/ e eu tomando banho de mar?”. “Eu vivo de brigar com o rei” – ou com a rainha e conterrânea, se Minas fosse maior que o mundo e se se tratasse do Brant dos anos 2010.

2012 Redescobrir - Ao Vivo24. Maria Rita, “O Que Foi Feito Devera (De Vera)/ Maria, Maria” (2012) – A filha paulistana de Elis (e, de certa maneira, de Milton) canta duas obras-primas da parceria com Brant, ambas apresentadas originalmente no Clube da Esquina 2 (1978). A melodia de Milton ganhou duas letras diversas, a outra chamada “O Que Foi Feito de Vera”, de Márcio Borges. O tom memorial da versão de Brant é especialmente marcante, e fala do moço Fernando nos dias de sua morte: “O que foi feito, amigo, de tudo que a gente sonhou?/ o que foi feito da vida?/ o que foi feito do amor?/ quisera encontrar aquele verso menino/ que escrevi há tantos anos atrás”. Alguém acrescentaria, saudoso de Brant: “E o que foi feito é preciso conhecer/ para melhor prosseguir”.

25. Bruno Souto Chá de Pólvora, “San Vicente” (2015) – No exato instante em que Fernando Brant morria, em algum lugar no mundo jovens cantavam letras de Fernando Brant – esta versão pertence à coletânea Mil Tom, produzida por Pedro Ferreira para o selo-site Scream & Yell. Do mundo e de Minas, ainda com sabor de vidro, corte, sangue e América do Sul.

2015 Mil Tom - Disco 1

 

Michel Teló foi assassinado…

$
0
0

Este texto é uma resposta às leituras e comentários ao texto “Morreu Michel Teló?“. Se você não leu aquele texto, por favor leia. Se houve espanto há duas semanas, hoje causa mais espanto ainda o fato de que Teló morreu não de causas naturais. Mas assassinado pelos próprios fãs sertanejos.

É claro que todo bom leitor entenderá a alegoria aqui construída. E quero crer que os sertanejos universitários também entenderão. Michel Teló foi assassinado pelos fãs sertanejos nos comentários ao referido texto. Olhem lá! Vários haters de primeira hora falaram que Teló “não tem voz”! Que Teló é cantor “de um hit só”! Que Teló só é quem é “por causa da Globo e do Fantástico“! Outros disseram que “Cristiano Araújo era muito melhor cantor do que Teló”. Esses e outros descabidos comentários demonstram que os fãs sertanejos, em seus momentos mais emocionados, parecem não ponderar. Isso não seria preocupante se os comentários se restringissem aos eufóricos haters da internet.

Espantoso é que blogueiros quase sempre ponderados e inteligentes tenham caído no discurso desregrado que domina a internet. De forma que este texto também quer polemizar com dois importantes jornalistas da música sertaneja.

Sabemos que, na era da internet, os blogs cumprem um papel de extrema importância, especialmente para determinados gêneros musicais que se fortaleceram com a digitalização da música. Assim, este texto visa dialogar não apenas com haters, mas com pessoas quase sempre coerentes, como André Piunti e Marcus Vinicius Bernardes.

Piunti é dono do magnífico blog Universo Sertanejo e autor de pelo menos cinco textos sobre a morte de Cristiano Araújo, algumas vezes criticando indiretamente a forma como, segundo ele, a imprensa “culta” viu a morte de Araújo. Ele não comentou diretamente meu texto, mas seus textos pertinentes e genéricos merecem problematizações. Bernardes é autor do Blognejo, outra referência fundamental na internet, e autor do longo texto “Nem Cristiano Ronaldo e nem Michel Teló“, no qual critica diretamente meu texto.

Ambos, Bernardes e Piunti, acabaram diminuindo a simbólica conquista que “Ai se Eu Te Pego” (2011) representou na música brasileira da era da globalização, colocando Cristiano Araújo num pedestal desproporcional a sua curta trajetória.

A morte de Cristiano Araújo, uma semana depois, ainda causava polêmicas. De um lado estavam aqueles como Zeca Camargo, Alex Antunes e Marcelo Rubens Paiva, que se regozijavam em diminuir a música sertaneja. Parecem ter um apreço em se distinguir do povão para com isso dizerem-se superiores. Trata-se de um erro do qual meu texto “Morreu Michel Teló?” se distingue no terceiro parágrafo. Basta ler. Nesse ponto estamos eu, Piunti e Bernardes de acordo. Essas figuras à la Zeca Camargo não merecem consideração. Chamaremos essa parte da sociedade brasileira de “sociedade Zeca Camargo”. Zeca foi pego aqui como exemplar não por ter sido o pioneiro, mas pela repercussão de seu caso. O pecado da “sociedade Zeca Camargo” não é ignorar o Cristiano Araújo, mas ter orgulho besta desse ato.

No entanto, eu me distingo de Piunti e Bernardes no seguinte aspecto: parte da estranheza que a “sociedade Zeca Camargo” sentiu com a morte de Cristiano deve-se, sim, ao elitismo cultural, mas isso não explica tudo. O largo desconhecimento do cantor sertanejo universitário deve-se também ao fato de que ele não conseguiu ir além de marcos construídos na cena sertaneja antes dele, o que dificultou os não-fãs de música sertaneja a identificá-lo, nomeá-lo e, em alguns casos, sequer ouvi-lo. Se fosse Teló, por exemplo, não haveria essa dificuldade, afinal foi impossível fugir de “Ai se Eu Te Pego”. De forma que a questão é mais complexa do que simplesmente acusar um setor da sociedade, por mais que haja razão para isso.

Do outro lado do debate sobre a morte de Cristiano Araújo e contra a “sociedade Zeca Camargo” estão aqueles, como Piunti e Bernardes, que querem provar tintin por tintin que Cristiano era um artista nacional e que tinha um enorme sucesso. E quem não percebe isso seria “das elites” ou “do Leblon”, pessoas que não enxergam além do próprio umbigo.

Aqui cabe um caso paradigmático que demonstra o quanto esse argumento é equivocado. Fafá de Belém, em recente entrevista, disse que tampouco conhecia Cristiano Araújo. Trata-se de algo espantoso! Não se pode dizer que Fafá seja “do Leblon”. Ela é alguém que esteve historicamente atenta ao sertanejo. Fafá foi uma das primeiras artistas da MPB a gravar o gênero. Em 1989 gravou “Nuvem de Lágrimas” e chamou a dupla Chitãozinho & Xororó para cantar com ela. Foi através dela que os paranaenses puderam atingir públicos que não os ouviam ainda.

chitaozinho_e_xororo_ensaio_jul2011_f_009

 

Em 1991 Fafá apostou em uma nova dupla: Zezé di Camargo & Luciano. Ela gravou o chamamé “Águas Passadas” no primeiro disco da dupla. De forma que não se pode dizer que Fafá seja alguém sem apreço pelo sertanejo e pela diversidade regional. Ainda assim, nem ela conhecia o ultrapopular Cristiano Araújo. Como sair desse paradoxo? Vê-se que o argumento de que “as elites” não conheciam Cristiano Araújo tem que ser revisto.

Meu texto foi acusado, mais diretamente por Marcus Vinicius Bernardes, de ser escrito por alguém sem contato com a música sertaneja. Embora isso seja um equívoco, não cabe a mim aqui provar fidelidade ao que quer que seja. Isso é irrelevante. O que importa é que os argumentos do texto não foram rebatidos, apenas simplificados. É uma pena. Haveria espaço para irmos além da comoção, que apesar de justa, não pode limitar a reflexão.

Então tentarei aqui explicar melhor os argumentos do texto que tanta polêmica causaram.

A tese do artigo de “Morreu Michel Teló?”, que não foi refutada por nenhum dos autores (e apenas dois isolados comentários abordaram, entre centenas), é de que a música sertaneja atual vive um processo de institucionalização. E de que a morte do sufixo “universitário” denota exatamente isso. Ninguém rebateu essa ideia.

Uma semana depois de morte de Araújo, vi um vidente no programa TV Fama, da Rede TV!, dizer que uma mulher do novo sertanejo sofreria um acidente em breve. Novamente o termo “universitário” foi suprimido. Até pelo mais midiático dos videntes comerciais de redes de TV! Como se vê, a tese de “Morreu Michel Teló?” continua de pé. O termo “universitário” desaparece, e isso denota um complexo processo ignorado por todos, inclusive pelos blogueiros. Talvez não mereça consideração, já que eles devem ter certeza de que o sertanejo não é mais “universitário” faz tempo. Mas isso reforça exatamente a tese da institucionalização.

O texto em nenhum momento disse que estava em jogo o meu gosto pessoal. Não há sequer uma linha para dizer que fulano é “melhor” que sicrano. Podem reler. O que eu apontava é que havia um problema na dimensão dada à morte de Cristiano. Ela foi tratado de forma apoteótica, como Leandro fora tratado em 1998. Mas Leandro era maior (e não “melhor”) que Cristiano. Por quê? Porque Leandro & Leonardo conseguiram algo que Cristiano ainda não havia conseguido: transformar a música sertaneja e a música brasileira.

Leandro & Leonardo colocaram a música sertaneja em nível nacional, desestabilizando antigas tradições. Há um antes e um depois de Leandro & Leonardo, que estouraram nacionalmente o hit “Entre Tapas e Beijos” em 1989. Apesar do enorme sucesso de Cristiano Araújo (porque tudo que se refere à cena sertaneja é gigantesco), não se pode dizer que o cantor universitário tenha colocado a música sertaneja num degrau maior do que já estava.

Como se vê, o meu texto “Morreu Michel Teló?” não procurava “diminuir” Araújo ou a música sertaneja, mas colocar os pingos nos is para além da comoção que descontrola a muitos.

Daí a necessidade de comparar, provocativamente, Michel Teló e Cristiano Araújo. O paranaense Teló colocou a música sertaneja num patamar que ela não estava antes de “Ai se Eu Te Pego”. Ele superou em muito todas as investidas da geração anterior de tentar se internacionalizar. A música sertaneja conseguiu com “Ai se Eu Te Pego” um sucesso multinacional, tornando-se, ao lado de “Gangnam Style”, de Psy, um dos primeiros hit da era da globalização que não foram cantados em inglês. Isso é um fato histórico que não pode ser diminuído nem relativizado.

O sucesso de Teló acabou até puxando outras canções consigo, como “Balada” (2011), de Gusttavo Lima, entre outras. Não se trata de pensar, como disse Bernardes, que eu ache que a música sertaneja “parou em Michel Teló”. Não é isso. Trata-se apenas de mostrar que, até hoje, “Ai se Eu Te Pego” é um marco não superado na história da música brasileira. Aliás, um marco raro. Antes dela apenas “Garota de Ipanema” (1964) tinha atingido o mesmo patamar. É por isso que não se pode dizer que Cristiano Araújo tivesse a mesma importância na cena sertaneja que teve e tem Teló. Isso não é diminuí-lo. É apenas dimensionar uma carreira que, embora tenha atingido as multidões, teve concorrentes maiores.

Valem ainda duas comparações para melhor explicar a tese de “Morreu Michel Teló?”. Comparemos a carreira de dois artistas do passado, mais ou menos quatro anos depois de iniciarem o sucesso nacional: Roberto Carlos e Eduardo Araujo. Em 1969 eles, assim como hoje Teló e Cristiano, eram artistas conhecidos nacionalmente, ídolos da jovem guarda, com hits que estavam na boca das multidões. Faziam parte de um gênero que tomou todo o Brasil rapidamente e eram muito criticados pelas “elites culturais”.

EduardoAraujo-oBomLembram-se de Eduardo Araujo? Trata-se do cantor de “O Bom” (1967): “Meu carro é vermelho/não uso espelho pra me pentear…”, um hit que tocou do Oiapoque ao Chuí nos anos da jovem guarda. Não foi o único hit do cantor, que assim como Cristiano Araújo também teve alguns mais. A carreira de Eduardo Araujo, assim como de grande parte dos artistas da jovem guarda, foi embalada pelo sucesso de hits tocados nas casas de milhões de pessoas, em todo o país.

Mas uma coisa é certa: Eduardo Araujo não era Roberto Carlos. O cantor de Cachoeiro do Itapemirim é um monstro da história da música brasileira. Roberto é simplesmente “o cara” que deu uma nova dimensão à música popular. Por mais sucesso que Eduardo Araujo tenha tido na sua época, não pode ser comparado ao papel histórico de Roberto Carlos. É mais ou menos por aí, com os problemas de toda comparação, que meu texto colocou lado a lado Teló e Cristiano Araújo. Assim como Roberto e Eduardo Araujo em 1969, Teló e Cristiano têm em 2015 por volta de quatro anos de sucesso nacional. Mas Teló e Roberto conseguiram algo que os Araújos nunca conseguiram: colocar seu gênero em novo patamar. Houve antes e depois de Roberto na música brasileira. Há um antes e depois de Teló. Isso não é “gosto”. É só uma constatação.

imagesAinda é possível mais uma breve comparação de Cristiano Araújo com Zezé di Camargo & Luciano. Em 21 de maio de 2012 Zezé foi ao programa Roda Viva, da TV Cultura. Lá foi perguntado sobre sua ida à casa do presidente Fernando Collor em 1992, levado por Gugu Liberato e o programa Sabadão Sertanejo. Essa visita gerou nos sertanejos a injusta alcunha de serem “trilha sonora da era Collor”. Seja como for, isso não está em jogo agora. Pois bem. Zezé respondeu:

“Na época do Collor, aquilo que aconteceu com a música sertaneja… eu participei… mas nós não éramos ainda dupla de primeiro escalão… na época eram Chitãozinho & Xororó e Leandro & Leonardo os dois grandes nomes… mas nós fomos!”.

Nessa época da visita a Collor, Zezé & Luciano já tinham diversos hits na boca de milhões de brasileiros, como por exemplo: “Quem Sou Eu sem Ela” (1991), “Eu Te Amo” (1991), “Coração Está em Pedaços” (1992), “Muda de Vida” (1992), só para ficar nas mais conhecidas. Isso sem falar no megasucesso do qual, gostando ou não, ninguém em território nacional conseguiu escapar: “É o Amor”, de 1991. Cristiano Araújo, apesar do enorme sucesso, ainda não tinha tido um “É o Amor”. Se Zezé pôde, anos mais tarde, se considerar um artista que “não era do primeiro escalão” em 1992, por que seria um grande pecado considerar Cristiano Araújo um artista que ainda não havia chegado neste patamar (embora caminhasse a passos largos para isso)? Isso não é diminuir Araújo nem é uma questão “de gosto”. É apenas um fato. Até porque denota que ainda havia espaço para o artista crescer.

E não sou apenas eu que digo isso. De forma enviesada, até mesmo o blogueiro Andre Piunti disse. No dia 25 de junho, ele publicou um texto intitulado “Cristiano Araújo (3) – o resultado, em números, das homenagens das rádios“. Relatando dados da empresa Connectmix, ele mostrou como Araújo dominou as rádios por todo o país naquele dia. Isso é normal quando um grande artista morre, e Piunti relatou isso de forma equilibrada, como faz sempre.

O curioso é que em 29 de junho o mesmo blogueiro tenha fornecido dados que relativizavam a força de Araújo. No texto “As músicas sertanejas mais tocadas da última semana (21/06 a 27/06) Piunti fez uma lista dos dez artistas mais tocados. Trata-se de algo costumeiro em seu completo blog, algo sem preço para um historiador do futuro. Daqui a alguns anos constataremos o valor de saber, semana a semana, os sertanejos mais tocados, graçasàa obsessão virtuosa do blogueiro. É algo realmente inestimável. Pois bem. Entre os dez artistas mais tocados da semana de morte de Araújo tivemos Luan Santana, Victor & Leo, Marcos & Belutti, Michel Teló, Leonardo e Eduardo Costa, Fernando & Sorocaba e João Bosco & Vinicius, entre outros. Cristiano Araújo não estava entre os dez artistas mais tocados. Claro, ele já ocupou a lista em outros momentos. Seja como for, é espantoso que Cristiano tenha sido ultrapassado por vários artistas do próprio meio sertanejo na semana de morte, quando foi insistentemente tocado Brasil afora.

Não era a primeira vez que Piunti dava a Cristiano Araújo a dimensão correta dentro da cena sertaneja. Quando foi roteirista do programa Bem Sertanejo, Piunti limitou a relevância de Cristiano. Como mostrou o jornalista Mauricio Stycer, ao longo de 2014 foram exibidos no Fantástico 12 episódios com 13 minutos cada. Araújo foi contemplado com exatos 15 segundos do último episódio, depois que o apresentador Tadeu Schmidt, em off, informou: “A nossa viagem musical termina aqui. Mas o sertanejo segue adiante com outros nomes da nova geração, como Cristiano Araújo”. Luan Santana, Victor & Leo, Paula Fernandes e vários outros mereceram mais tempo que Cristiano, com razão. Segundo Stycer, em entrevista com Piunti, Cristiano Araújo não conseguiu mais espaço “por questão de tempo”. Seja como for, que fique claro que não foi nenhum pecado o que Piunti fez. Ele assim o fez pois Araújo não tinha a dimensão dos outros na época do programa de Michel Teló.

Talvez devido ao pouco espaço dado a Cristiano Araújo em Bem Sertanejo, alguns fãs de Cristiano Araújo tenham preferido agredir Teló. Nos comentários ao meu texto, alguns haters chegaram a dizer que Teló era um “cantor de um sucesso só”. Nada mais equivocado. Só para ficarmos nos principais, Michel Teló tem hits consideráveis desde 2010: “Ei, Psiu! Beijo Me Liga” e “Fugidinha” (2010), “Ai se Eu Te Pego” e “Humilde Residência” (2011). Obviamente os experientes blogueiros não caíram nessa ingênua armadilha, apenas os haters. Mas, mesmo que essa acusação fosse verdade, cabe uma questão.

Teló não precisa mais de hit. Ele pode parar de ser cantor e virar “apenas” apresentador de Bem Sertanejo, como muitos disseram insanamente nos comentários. Ainda assim, seu nome estaria marcado na história da música brasileira por ter colocado uma canção extremamente popular no top hits mundiais do seu tempo.  Teló já é um medalhão da música brasileira, e pode, hoje, até dispensar sucessos, caso queira.

No entanto, os fãs sertanejos gostam muito de valorizar os sucessos. Claro, é compreensível. Para um gênero popular é importante ter uma ou várias canções na boca de milhões. Mas é preciso diferenciar sucesso e prestígio. Sucesso pode vir e passar. Traz fortuna, mulheres, carros, mas não dura para sempre. Prestígio se conquista com sucesso, mas também com atitudes que não dão lucro imediato, mas que constroem a respeitabilidade no meio. Ser apresentador do Bem Sertanejo, comandado pelo ótimo roteirista Piunti, coloca Teló num papel de mediador moderno do gênero. É algo fundamental para a construção do seu prestígio, para além do sucesso momentâneo.

E aí temos um problema frequentemente subestimado tanto pelos blogueiros sertanejos quanto pelos haters. Refiro-me aqui sobretudo a crítica de Marcus Vinicius Bernardes, que demonstra um rancor bastante agressivo contra aqueles que supostamente não seriam “entendidos” na música sertaneja. Bernardes rejeita os críticos que “não sabem o que se passa além dos muros da cidade maravilhosa ou dos arranha-céus paulistanos”, sujeitos “elitistas” que não admitiriam outros valores culturais. Em parte, Bernardes tem razão. Como dissemos, a “sociedade Zeca Camargo” afeita a MPB/samba/bossa nova/rock existe. Com frequência essa “sociedade Zeca Camargo” dificulta o conhecimento do Brasil real e diminui tudo aquilo que não passa por sua lente. Mas meu artigo “Morreu Michel Teló?” não se confunde com essa postura.

O que me espanta é que Bernardes não tenha se preocupado em ver de fato quem era o autor do artigo “Morreu Michel Teló?”. Se visse minha biografia, escrita ao final do artigo, saberia que tenho um livro que critica exatamente esse elitismo cultural da “sociedade Zeca Camargo”. Meu primeiro livro, Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga, publicado em 2011 pela editora Record, lidou exatamente com essas questões que ambos, eu e Bernardes, condenamos nas elites culturais.

Mas Bernardes não sabe quem sou. E o caminho mais fácil de desmerecer minha crítica séria foi atribuir meu pensamento à revista CartaCapital. Tampouco sabe ele que não tenho nenhum vínculo direto com a revista ou o site, e sequer ganhei qualquer dinheiro para escrever. Aliás, nem jornalista sou. Sou um reles historiador. Se Bernardes tivesse lido meu outro artigo no FAROFAFÁ veria que penso de forma muito semelhante a ele. Meu artigo “Existe sertanejofobia em SP” mostra como a Virada Cultural, evento que desde 2005 mobiliza a prefeitura da capital paulista e os moradores da maior cidade do Brasil, vem sistematicamente ignorando a música sertaneja, num misto de preconceito e desconhecimento.

Talvez por desconhecimento de quem critica, Bernardes agride aqueles que, na sua ótica, não são “legítimos” sertanejos, como eu. Parece haver um medo de discutir para além das fronteiras do gênero. Mas creio que um dos contratempos de querer ganhar a alcunha de gênero musical nacional é discutir com aqueles que não têm o sertão como berço. Acusar cariocas ou paulistanos de “elite” ou “pseudo-intelectuais”, como disse Bernardes, não vai ajudar a de fato construir a hegemonia tão desejada pelo blogueiro.

Afinal, por que tais blogueiros  e haters têm tanto ódio contra os “não sertanejos”? Em parte, sabemos, é compreensível. Afinal muitos “não sertanejos”, como disse Bernardes, não querem sair de “seus Leblons e suas praias de Copacabana para desbravar o Brasil e entender esse fenômeno cultural” que é a música sertaneja. De fato: assim é a “sociedade Zeca Camargo”. Mas o mundo é complexo e nem todos são iguais a Zeca. Há pessoas que de fato querem dialogar. É preciso abrir o olho e saber diferenciar. Aliás, seria desejável que a crítica sertaneja demonstrasse estar além do ódio que tanto sofrem. Afinal, a música sertaneja sempre buscou negociar com os “não sertanejos”, e não apenas se opor a eles.

Se é verdade que em muitos momentos a crítica cultural “não sertaneja” rejeitou os sertanejos, é preciso aceitar que uma parte dela está atenta a seus gigantescos passos. Especialmente este FAROFAFÁ. Em 9 de janeiro de 2012, em meio ao sucesso de “Ai se Eu Te Pego”, quando muitos criticavam o gênero, Pedro Alexandre Sanches escreveu o elogioso texto “Michel Teló exporta a sanfona de Luiz Gonzaga para o mundo“, no qual compara o paranaense ao mais famoso artista pop brasileiro do interior. Ou seja, não é de agora que alguns poucos “não sertanejos” buscam dialogar de forma respeitosa. E dialogar é sempre preciso.

estradadavida

A música sertaneja só atingiu o patamar que atingiu porque teve mediadores com quem dialogar. Há muitíssimos exemplos dessa associação com “não sertanejos” na longa jornada da música sertaneja. Por exemplo: em 1981 foi lançado o filme Estrada da vida. Era uma cinebiografia da dupla Milionário & José Rico filmada por ninguém mais, ninguém menos que Nelson Pereira dos Santos, o pai do cinema novo, que até então não tinha nenhuma intimidade com a música do interior.

Em 1986, Roberto Carlos chamou Chitãozinho & Xororó e Chrystian & Ralf ao seu programa de fim de ano. Também nesse ano Jair Rodrigues gravou “Majestade, o Sabiá”, de Roberta Miranda, dando aval à iniciante. Fafá de Belém, como vimos, também ajudou a nacionalizar a música sertaneja na virada dos anos 1980 para os 1990.

No programa Amigos, da Globo, entre 1995 e 1999, estiveram presentes Fafá de Belém, Fábio Jr., Simone, Elba Ramalho e Daniela Mercury. Em 1999, Maria Bethânia gravou “É o Amor”.

1624701-4538-atm14

Em 2005, Caetano Veloso produziu junto com Zezé di Camargo a trilha sonora do filme 2 Filhos de Francisco, que contou com participações de Nando Reis, Ney Matogrosso e Bethânia.

17591_36

Em 2006, Chico Buarque também se aproximou da música sertaneja e gravou a canção “Minha História” no CD de Zezé Di Camargo & Luciano. Em 2007, Zé Ramalho e Lulu Santos participaram do disco de Chitãozinho & Xororó.

abibt9emogi469nebsklg5hfo

O sanfoneiro Dominguinhos participou da gravação da canção “Kid Lampião” no disco Retrato – Ao vivo no Estúdio, de César Menotti & Fabiano, de 2010. O herdeiro musical de Luiz Gonzaga também regravou com Paula Fernandes a canção “Caminhoneiro”, no disco Emoções Sertanejas, do mesmo ano. Pepeu Gomes, ex-Novos Baianos, participou da regravação de sua composição “Sexy Yemanjá” no DVD de Victor & Leo Ao vivo em Floripade 2012. O ex‑titã Nando Reis e o baterista do Skank, Haroldo Ferretti, também participaram desse disco. Zé Ramalho gravou no disco de 2012 de Paula Fernandes.

Como se vê, as mediações e diálogos foram essenciais na história da música sertaneja, como já demonstrou Danilo Cymrot em ótimo texto também publicado em FAROFAFÁ. Essa mediação foi algo que Paula Fernandes fez quando cantou com Roberto Carlos em 2010, por exemplo, o que talvez explique que ela seja reconhecida mais facilmente que Cristiano Araújo pelo público “não sertanejo”. O contato com a famigerada MPB e com o público “de elite” e “da praia de Copacabana”, “não sertanejo”, não pode ser visto como algo a apenas ser condenado. Esses contatos auxiliaram a nacionalização da música sertaneja e seu crescente sucesso, processo que não pode ser subestimado.

Por fim, gostaria de convocar todos a um debate aberto e franco sobre a música sertaneja. Faz tempo ela se tornou tão importante que não pode mais ser analisada na base do “gosto” ou “não gosto”. Sua discussão não pode ficar restrita a “entendedores” ou “especialistas”. Tampouco pode ser analisada apenas com base na ideia de que “as elites” são “preconceituosas”. Afinal, uma parte da elite se tornou faz tempo (desde os anos 1990) consumidora de música sertaneja.

Ou seja, a questão é mais complexa. Se aqui debato com Piunti e Bernardes é porque os reconheço como louváveis jornalistas e sérios analistas do gênero que tanto amamos. Façamos com que a crítica jornalística, cada vez mais liberta dos conglomerados empresariais da imprensa tradicional, esteja à altura desse gênero tão importante para a cultura brasileira.

 


O Rock in Rio e a morte da política

$
0
0

Amigo meu disse que o Rock in Rio simboliza a morte da política. Ele não desenvolveu, mas achei a ideia intrigante e resolvi aprofundar. Estive lá no final de semana (o Rock in Rio recomeça nesta quinta-feira, 24/9) e colhi amostras para análise.

Primeiro, devo advertir que não sou um hater por vocação, não falo mal por impulso ou para obter aprovação de amigos em bar ou em fórum da internet. Caguei para as necessidades de socialização pelo sentimento de pertencer a uma turba.

Há séculos descobri que não é a venue, a locação, que determina a subversão. Woody Guthrie transformou feiras agropecuárias rednecks em palanques socialistas. Bob Dylan foi ao coração do conservadorismo, o folk Newport Festival, munido de sua Fender Stratocaster, para fazer a sua “passeata” pela guitarra elétrica. Caetano, Gil e Mutantes fizeram a Revolução tropicalista pela via dos caretérrimos festivais da canção.

É um curioso paradoxo: o mesmo Rock in Rio que colocou na sexta-feira passada Zélia Duncan e Mart’nália fazendo micagens de maluquetes no palco, pisando duro na corridinha, “imitando” Cássia Eller, também abrigou a própria Cássia com seu jeito de olhar de cima, quase com desprezo, cuspindo e mostrando os peitos desafiadoramente. Cássia era o descontrole, era a vida fora dos trilhos, não tinha nada a ver com simulação.

O mesmo festival que tieta celebridades como Cláudia Leitte também coloca Tom Zé tocando para 100 mil metaleiros no meio da tarde escaldante (metaleiros que o estranharam a princípio, mas depois o celebraram). Foi onde eu conheci Amadou & Mariam e vi Bruce Springsteen cantar “Sociedade Alternativa”.

Capela foi montada para realizar casamentos dos casais roqueiros - Foto Magalhães - I Hate Flash

Capela foi montada para realizar casamentos dos casais roqueiros – Foto Magalhães – I Hate Flash

É claro que há no Rock in Rio o banquete de signos, o bombardeio signíco do mundo comercial. Ele me incomoda, como a todos vocês, é opressivo muitas vezes. Embora deva confessar que, dessa vez, eu não achei incômodo o Playcenter do Rock in Rio. Eu inclusive achei divertidos os casamentos exibicionistas numa capela estilo Las Vegas – assisti a dois deles, tinham senso de humor e alegria.

Mas, quando procurei pela política, tava difícil. Evandro Mesquita, da Blitz, quase me surpreendeu – é difícil achar um artista com menos teor de política no sangue, mas ele veio com um discurso do tipo “quando a gente puder voltar a sonhar neste país…”, e eu imaginei que viesse algo dali. Mas não saiu mais que isso.

Foi de onde menos eu esperava que veio a política com P maiúsculo. Confesso que não acreditei quando os Titãs, em vez de “Sonífera Ilha” ou “É Preciso Saber Viver”, escolheram “Bichos Escrotos” e “Polícia” para fazer o seu pot-pourri de anos 1980. Seria mera coincidência, não fossem os statements políticos de Sérgio Britto (“Vocês também são explorados. Vocês também são explorados. Aqui!”) e de Paulo Miklos (“Porque aqui no Rock in Rio só bicho escroto é que vai ter”). Estava ali a maior intervenção política do festival, mas o problema foi a ressonância daquilo: lá embaixo, como aqui no jornalismo, ninguém captou.

Talvez viesse daí o decreto de morte da política do meu amigo. O problema não está na legitimidade do artista ou no tamanho de sua declaração pública. O problema está no público, na incapacidade do espectador de reconhecer as mensagens. Predomina uma consciência sem sentido histórico, sem conhecimento do que veio antes, que não sabe o que o Brasil viveu, o que atravessou e muito menos o que o mundo vive. Que canta bem os refrões em inglês, mas não sabe escrever nem expressar quase nada em português.

Eduardo Cunha foi vaiado pessoalmente. Dilma foi vaiada virtualmente. Mas o impacto dessas vaias era nulo: o cidadão como que perdera sua legitimidade pública. É tipo a notícia veiculada nas TVs de mídia do metrô: embalada a vácuo, desprovida de sua organicidade, ela perde sua capacidade mobilizadora. E as caixas de ressonância seguem essa toada: cheguei a ler notícia dizendo que estavam esgotadas as senhas para a tirolesa.

Freddie Mercury, em 1985, fez política ao reger a multidão em “Love of My Life”. A comunhão que aquilo propiciava era única, era uma promessa utópica, um sentimento que conseguia perpassar todas as classes, as idades, os estratos sociais. O Queen que desembarcou este ano era só um tributo, não tinha por que odiá-lo com tanta veemência: desde que Freddie morreu, muitos já foram convidados para cantar no seu vácuo: Tom Chaplin (Keane), Zuccero, Pavarotti, Robbie Williams, Paul Rodgers e o próprio Elton John. Nada disso pretendeu ser o Queen. O novo cara, Adam Lambert, tinha só 9 anos em 1991, quando Mercury morreu, e é um menino desses do American Idol, cuja lição é só décor, impostura – é jeca se sentir lisonjeado que ele tenha gostado de Ney Matogrosso, Ney é um milhão de vezes mais importante.

De Rod Stewart ouviu-se o que se esperava ouvir - Foto David Argentino - I Hate Flash

De Rod Stewart ouviu-se o que se esperava ouvir – Foto David Argentino – I Hate Flash

Quanto aos outros shows, devo dizer o seguinte: Elton John e Rod Stewart fizeram seus espetáculos de cassino com eficiência quase letárgica. Ivete no show dos Paralamas, ocupando o lugar que foi de Djavan em “Uma Brasileira”, foi (na minha opinião) uma heresia. Gojira foi chato. Metallica, sempre profissional. Angra foi maçante até que chamou o Dee Snider ao palco.

A maior das apresentações do festival, no sentido de impacto da palavra, foi a do grupo inglês Royal Blood. Apenas dois caras, um deles fazendo do baixo uma espécie de dublê de guitarra (Mike Kerr), e um baterista que poderia estar numa banda grunge (Ben Tatcher). Um power duo, como White Stripes, Blood Red Shoes, Death From Above 1979, duas criaturas ocupando um palco de 22 metros de altura e 44 metros de largura (você pode argumentar que o Black Keys também faz isso, mas note que tem um baixista e um laptop atrás deles).

Jogando-se no público contra o zelo dos seguranças, tocando com virulência, espancando a bateria e fazendo canções como “Blood Hands” se projetarem mais alto e mais palpáveis do que as megaestruturas do festival, eles preencheram um vácuo de sentido. “O importante é que a música seja a representação do que o artista pensa e no qual acredita”, disse Mike Kerr. O Royal Blood mostrou que a política não só ainda não morreu como não tem jeito de matá-la – mesmo que o comportamento de manada assim o indique.

Roda gigante lembrava  os tempos do Playcenter - Foto David Argentino - I Hate Flash

Roda gigante lembrava os tempos do Playcenter – Foto David Argentino – I Hate Flash

Publicado originalmente em El Pájaro que Come Piedra

Manoel Poladian, o avô do showbiz

$
0
0
Manoel Poladian e o Andre Rieu de Papelão, sua mina de ouro, atrás dele: faro inato para os bons negócios - Foto: Jotabê Medeiros

Manoel Poladian e o Andre Rieu de Papelão, sua mina de ouro, atrás dele: faro inato para os bons negócios – Foto: Jotabê Medeiros

Desde 1958, o empresário criou festivais e promoveu shows com Vinicius de Moraes, Elis Regina e Wilson Pickett, descobriu Jorge Ben, ignorou Chico Buarque, foi abandonado por Daniela Mercury e esteve por trás de mais de 200 apresentações de Ray Conniff. E ele está longe de parar, conta Jotabê Medeiros

Em seu escritório na região da Avenida Berrini, em São Paulo, há em todas as janelas um pires com um punhado de sal grosso e cabeças de alho. Filho de um fotógrafo e uma dona de casa armênios que imigraram para o Brasil em meio à Segunda Guerra, o empresário Manoel Poladian não crê em bruxas, mas prudentemente as teme. Aos 72 anos, ele é um controverso pioneiro do showbiz nacional. Há quem o tenha como um padrinho, outros como um capo.

Poladian foi o empresário que inaugurou recordes de público no Brasil no início dos anos 1970, época em que realizou o musical “Uma Noite em Buenos Aires”, com Astor Piazzola, Mariano Mores, Jorge Sobral e os maiores nomes do tango. Foram 1,5 milhões de ingressos vendidos e 175 shows no Anhembi, em São Paulo.

Mas Poladian já era um veterano, àquela altura. Em 1958, com apenas 16 anos, conseguira emancipação da família e ganhava a vida como comediante na televisão em programas como “Grandes Atrações Pirani Philco”, na TV Tupi. Tinha uma trupe de piadistas batizada como Os Boçais. Achava-se engraçado e independente. Mas o pai deu-lhe uma surra de chinelo bumerangue, conta, para que largasse o vício artístico. “Nesse meio, ou você é puta ou é viado”, ralhava o velho Manuk.

Em 1961, já com 19 anos, para fugir ao confronto, ele realizara parcialmente o desejo do pai: entrara em Direito no Mackenzie. “Era o auge da bossa nova. Vinicius tinha dito que São Paulo era o túmulo do samba, e aquilo me deu uma ideia. Resolvi fazer um festival universitário”. Criou o Festival da Balança, cujo elenco, já na primeira edição no Teatro Mackenzie, era invejável: o próprio Vinicius, Baden Powell, Silvinha Teles, Luiz Bonfá, Tamba Trio, Dick Farney, Lúcio Alves. Três mil pessoas encheram um espaço onde só cabiam 1,5 mil. Havia gente pendurada na sacada, nos corredores, em pé.

O Festival da Balança e suas edições subseqüentes eram beneficentes e foram o embrião dos festivais de arena que vieram depois. O refrigerante Crush! bancava os cartazes, que ele colava pela cidade. “Esses caras acham que inventaram o marketing, mas quem inventou fui eu”. Com espírito de comerciante, Poladian virou celebridade na universidade. Seu amigo Taiguara compôs o jingle da candidatura dele ao centro acadêmico.

Ele então encorajou-se a fazer novas edições, mas em 1962 e 1963, havia um problema: com que elenco? “Foi um ano péssimo, porque a bossa nova estava estourando no exterior, tinha os famosos shows no Carnegie Hall e estava todo mundo viajando”, lembra. Silvinha Teles o salvou. “Tem um cara lá no Beco das Garrafas que é um assombro”, lhe disse. Foram atrás do sujeito: Jorge Ben. Foi assim que Jorge Benjor acabou fazendo seu primeiro show em São Paulo. “Tive que alugar um smoking pra ele lá na Rua Pamplona, porque não tinha nem terno”, conta Poladian.

Hebe Camargo foi a apresentadora daquele Festival da Balança. Tinha tanta gente querendo se apresentar que Poladian teve que dizer não para alguns postulantes. Dois deles: Lennie Dale e um jovem Chico Buarque de Hollanda. “Não deixei. Chico ficou na porta, não o deixei cantar porque já estava com quatro horas de show. Também, nem sabia quem era, sabia apenas que vinha da USP”, lembra o veterano.

Dali em diante, Poladian desenvolveu um know-how em promoção e realização de shows que o projetaria nesses 54 anos de carreira. Em 1965, fez um grande festival no Clube Pinheiros, com 8 mil espectadores, com Elis, Nara Leão, Jô Soares, Edu Lobo, Baden Powell, Vinicius. Sua fama provocou disputa. “Um dia, vieram me dizer que havia três baianos na porta do meu escritório. Mandei entrar. Eram Caetano, Gil e Bethânia”, conta. Passou a empresariá-los durante toda a década de 1970, realizava cerca de 80 a 100 shows por ano. “Apresentei Flora a Gil. Ela vendia ingressos para mim”, lembra.

Em 1972, foi contratado pela TV Globo e realizou shows de Mungo Jerry, Wilson Pickett, Demis Roussos, Santabarbara. Sua carreira internacionalizou-se. Em 1975, virou empresário do maestro Ray Conniff, que não fazia shows com outro empresário. Realizou mais de 200 shows de Conniff, em 15 temporadas. Fez shows de James Taylor no Parque Antarctica. Colocou 189 mil pessoas no Maracanã para ver Sting (a capacidade era de 100 mil). Hoje, é o empresário de outro fenômeno de público, Andre Rieu (35 shows lotados no Anhembi, com 8 mil pessoas em cada espetáculo).

A solidificação da indústria musical no país ampliou sua influência. Ficou 18 anos com Ney Matogrosso, capitaneou o sucesso do RPM (182 shows em 7 meses no ano de 1985, com 3 milhões de espectadores). Tem poucas mágoas no ramo. Daniela Mercury, que rompeu contrato com ele dois anos antes do final, é uma delas. “Nunca fale de um artista para outro, porque eles têm uma vaidade incrível”, afirma. Outra de suas boutades: “Os caras grandes reconhecem, os pequenos não”, diz. “Sempre paguei na segunda-feira. Nunca atrasei um dia, razão pela qual nunca me processaram”.

É possível dizer que Poladian nivelou o chão de terra batida no qual os empresários atuais colocaram asfalto. Ele continua em plena atividade, embora tenha delegado a dois de seus três filhos as funções de gestão dos negócios. Um dos dois netos, Gabriel, de 11 anos, ensaia seus primeiros passos no métier empresariando um clown.

Manoel Poladian segue o conselho do seu amigo, o chansonnier franco-armênio Charles Aznavour, 92 anos, que também empresaria (virá de novo no ano que vem): “Parar é a antecâmara da morte”, cita, adiantando que já pensa em escrever sua autobiografia. Vai ser um salseiro, porque Poladian não é um homem de meias palavras. “Aos 72 anos, posso falar o que quiser sem medo das conseqüências”, diz ele.

* Publicado originalmente em El Pájaro que Come Piedra

Enfim, os artistas saíram de suas tocas

$
0
0

A música brasileira reage e volta às ruas para cantar e mobilizar multidões em torno de causas sociais

No domingo 6 de dezembro, Criolo, Maria Gadú, Filipe Catto, 5 a Seco, Cidadão Instigado, Céu, Paulo Miklos, Arnaldo Antunes, Vitrola Sintética, Vanguart, Tico Santa Cruz, Barbara Eugênia, Pequeno Cidadão, Karina Buhr, Tiê, Alessandra Leão, Comadre Fulozinha e dezenas de outros artistas. Era a #ViradaOcupação. Na segunda-feira, Emicida, Pitty, Metá Metá, Anelis Assumpção, Chico César, Bixiga 70, MC Luana Hansen e Meia Dúzia de 3 ou 4, entre outros, deram continuidade ao evento da véspera, mas desta vez levando pocket shows nas escolas ocupadas de São Paulo. Na terça-feira, Caetano Veloso, Criolo e Emicida (eles de novo), Jota Quest, Milton Nascimento, Tulipa Ruiz, João Barone e Wilson Sideral se reuniram no show beneficente #SouMinasGerais, em Belo Horizonte, que arrecadou fundos para subsidiar uma pesquisa independente depois da catástrofe ambiental de Mariana. No próximo domingo, sobem ao palco do Auditório Ibirapuera, Ney Matogrosso, Elza Soares, Mano Brown, Ava Rocha, Pitty, Criolo (três pontos para ele). Será o “Show Pela Cidadania”, no encerramento da 3ª edição do Festival de Direitos Humanos.

O ano de 2015 entra para a história por uma série de episódios desastrosos ou trágicos. Mas é no meio desse turbilhão que surge a melhor notícia para a cultura brasileira dos últimos tempos: os artistas voltaram a se engajar politicamente. Há uma clara e bela vontade de participação nesse momento conturbado da vida política e econômica, o que não significa fazer discursos ideológicos para partido A ou B. Quem pensa assim, não está entendendo nada do que está acontecendo na sociedade.

As dezenas de artistas que subiram em um palco improvisado no domingo para celebrar a revogação do decreto que fecharia escolas em São Paulo não pensaram em cachês, estruturas ou pequenices como dividir o palco com fulano ou sicrano. Apenas tocaram para pessoas que comemoravam a vitória maiúscula de estudantes contra o governador Geraldo Alckmin – se você pensa o contrário, talvez seja a hora de começar a apagar uns arquivos e quebrar alguns CDs e vinis. Os artistas queriam, com o ato, premiar uma luta política. Imaginem, então, uma aula-show no pátio da escola com Emicida, ídolos dos jovens secundaristas, ou Pitty? A cantora Anelis Assumpção, que foi à Escola Caetano de Campos, resume como se sentiu ao entrar num colégio: “Muito emocionada e agradecida por poder entrar nesse espaço tão sagrado que é uma escola ocupada no ano de 2015.”

Em apresentação no Rio, Caetano Veloso cantou, ao lado de Gilberto Gil, “Odeio Você” e a plateia emendou um “Cunha“. O cantor postou o vídeo em seu Instagram. No show #SouMinasGerais, o público parecia ter incorporado definitivamente o sobrenome do presidente da Câmara, artífice do golpe contra a democracia, à música do baiano tropicalista. Gil, que não participou desses últimos shows engajados politicamente, não fez por menos. Classificou de “delírio político” a tentativa de levar adiante o processo de impeachment de Dilma Rousseff.

Caetano Veloso no show #SouMinas Gerais - Foto: Renato de Paiva Guimarães

Caetano Veloso no show #SouMinas Gerais – Foto: Renato de Paiva Guimarães

Até um cada vez mais escritor e menos músico Chico Buarque decidiu se mobilizar. Ele e José Miguel Wisnick foram os dois únicos músicos, até agora, a assinarem a “Carta ao Brasil”, em que artistas e intelectuais se mostram contrários a “qualquer retrocesso nas conquistas que obtivemos” depois do fim da ditadura.

Em momentos em que a democracia e os direitos humanos sofrem ameaças, os artistas têm uma vocação ímpar de mobilizar corações e mentes, e parece que eles decidiram sair de suas tocas. Na história brasileira, a música sempre teve a força de traduzir um sentimento coletivo difícil de ser verbalizado apenas em palavras de ordem. Ela dava aos movimentos sociais a letra e a melodia necessárias para que mais e mais pessoas saíssem às ruas em prol de causas justas. É o que vemos voltar a ocorrer agora.

Lobão, Roger, Wanessa de Camargo e tantos outros artistas têm igualmente o direito de irem para as ruas para defender o “Fora Dilma”. Devem, de alguma forma, se identificar com um público que bate panelas e adora xingar a presidente. Mas é melhor isso do que o silêncio de tantos outros artistas que fingem que nada está acontecendo de extraordinário no país e tocam suas carreiras de forma alienada.

Ou como diriam os jovens para tudo o que está acontecendo hoje na música brasileira: “Aê, demorô”.

25 horas e ½ de Virada

$
0
0

Um evento realizado em 28 ruas abertas, 8 bibliotecas municipais, 9 centros culturais, 7 teatros municipais, 11 casas de cultura, 16 Viradinhas voltadas para o público infantil, 10 CEUs (Centros Educacionais Unificados) e 5 palcos montados nos bairros das zonas sul, leste e norte. A Virada Cultural impacta pela variedade de atrações. É preciso ser mais de um para aproveitar ao máximo o que ela tem de bom. Foi o que FAROFAFÁ fez. Três repórteres realizaram uma cobertura ampla, geral e exaustiva, do começo da festa até o último acorde ecoando pela metrópole. O relato a seguir é um retrato da diversidade cultural em tempo de tensão e instabilidade política.

18h29 Julio Prestes

Nesse instante, o sul-matogrossense Ney Matogrosso já trocou três vezes de roupa. Ele subiu ao palco pontualmente às 18 horas, cantando “Rua da Passagem”, do pernambucano Lenine. Veste uma espécie de burca cintilante, peruca de carnaval ou chapéu de guerreiro medieval, ao gosto do(a) leitor(a). Não lhe faltam apetrechos no pescoço, nos braços e nas pernas. No show, dança, rebola, salta e hipnotiza. É Ney sendo Ney.

Ney Matogrosso

No espaço reservado às autoridades, a convidados e à imprensa, o prefeito Fernando Haddad e a primeira-dama Ana Estela Haddad prestigiam a abertura da Virada Cultural de 2016. Há três cadeirantes, muitos jornalistas e fotógrafos, jovens com pulseira rosa ou crachá. O público espremido vê tudo mais de longe. E é de lá que cartazes de “Temer Jamais” e coros de “Fora Temer” são avistados e ouvidos. Ney ignora essas manifestações.

No palco Júlio Prestes, tradicionalmente visto como o principal da Virada, Caroline Martins e Jefferson Matos interpretam na linguagem de sinais as canções. São um show à parte, porque dançam, fazem caretas e sorriem conforme a música. Onze atrações contarão com a tradução simultânea. Ex-secretário municipal de Cultura que se afastou para se recandidatar nas próximas eleições, o vereador Nabil Bonduki está ali, mas com a cabeça voltada para a política. A esta altura, ninguém sabe se a maratona cultural será tranquila. Haverá manifestações? “Que seja uma Virada da alegria, da cultura e de reflexão sobre o futuro do país, futuro que está comprometido pela interrupção de um mandato eleito democrativamente pelo povo”, afirma.

19h22 Rio Branco
Especializado em carnavalizar canções de Caetano Veloso, o bloco paulistano Tarado ni Você arrasta um pequeno cortejo pelo asfalto da avenida Rio Branco, em torno dos versos otimistas de “Os Mais Doces Bárbaros” (1976): “Com amor no coração/ preparamos a invasão/ cheios de felicidade entramos na cidade amada/ (…) alto astral, altas transas, lindas canções/ afoxés, astronaves, aves, cordões/ avançando através dos grossos portões/ nossos planos são muito bons”.

FullSizeRender

O figurino dos foliões é ornamentado com galhos de árvores, que por vezes se misturam a folhas de papel com inscrições de “fora Temer” e “Temer jamais”, populares durante toda a Virada. A festa parece meio fora de lugar, ou, melhor dizendo, fora de hora. O carnaval não contagia, e o bloco querido da cidade desfila sem grandes transes catárticos, por entre versos que hoje soam melancólicos: “com a espada de Ogum/ e a bênção de Olorum/ como um raio de Iansã/ rasgamos a manhã vermelha/ tudo ainda é tal e qual/ e no entanto nada é igual/ nós cantamos de verdade/ e é sempre outra cidade velha”.

19h37 República

Os jovens Alberto Moraes e Dener Luiz Oliveira Santos, ambos de 20 anos, depois de atravessarem 15 estações de metrô, vindos de Itaquera, na zona leste, veem um público razoável e pouca concorrência ao redor na praça da República. Decidem montar seu negócio aqui mesmo, ao lado do público que assiste um tanto quanto barulhento à dupla de jazzistas formada pela norte-americana Dianne Reeves e o carioca Romero Lubambo. O mesmo show ocorreu quatro dias antes na casa de espetáculos Bourbon Street, em Moema, na zona sul paulistana. Só que lá o ingresso custava a partir de R$ 150. Na praça é de graça, como em todas as atrações da Virada Cultural.

Moraes e Santos não se importam com as pessoas conversando. Quanto mais alegres estiverem, maiores as chances de comprarem bebidas. A dupla da zona leste trouxe a mercadoria até o centro na esperança de ganhar cerca de R$ 150 por isopor vendido. A garrafa de vinho e de catuaba, dois hits de edições passadas do evento, custa R$ 10. Cervejas, R$ 10 e R$ 5 reais, e o minirrefrigerante, R$ 2. “Paramos primeiro no Anhangabaú, mas lá estava vazio”, afirma Moraes.

19h40 Arouche

image-2

A caminhada de drag queens pelo largo do Arouche parece aquela cena em slow motion do filme As Panteras. Alice Nation, Dakota Monteiro, Pyetra, Slováquia, Gina Yamamoto: elas não estão ali a passeio. Penélope Nova é anunciada como “bicha que nasceu mulher por acidente”. Ela compõe o júri com a travesti Luiza Marilac e a drag Fátima Fastfood. Penélope tira de letra as roubadas que lhe impõem. “Se fosse rola, vocês não empurrariam para mim!”. Gina Yamamoto agita os braços freneticamente, como Elis-cóptero cantando “Sá Marina”. Pyetra brigou com a mãe, está com a maquiagem borrada de chorar. Mas ela termina vencendo o concurso de drags e levando um cheque de R$ 1 mil para casa.

image

O clima é de pecados da carne. Na Churrascaria Prazeres do Sul, atrás do palco das drags, justamente no momento de maior ferveção, três freirinhas tomam três garrafas de 600 ml de cerveja Original e comem picanha. Dia de folga no retiro certamente não é dia para um colchão duro ordinário e tubaína caramelizada.

20h15 Av São João

Espécie de Esperanza Spalding da santeria, a cantora cubana Yusa encara a avenida reservada às mulheres cantoras com dois baixos elétricos e muita presença de espírito. “Esta avenida tem história”, diz. Ela tocou baixo no show de Lenine InCité, em Paris, a convite do pernambucano. Mas Yusa tem público rarefeito neste início de noite – seu coté de trova cubana com Jaco Pastorius concorre com todos os pesos pesados da praça Júlio Prestes, do Teatro Municipal e da praça da República. Não há quase nenhuma testemunha para seu conceito orgulhoso, black music afrocubana. A música é áspera, difícil para plateias heterogêneas, mas os malucos da hora não querem saber, é como se estivessem ouvindo Flea, dos Red Hot Chili Peppers. São poucos, mas dançam como uma tribo inteira de Sioux.

20h16 Av Rio Branco

No território dos roqueiros, não faltam jaquetas de couro, camisetas pretas ou brancas e jeans surrados. O analista de telecomunicações Ricardo Alexandre, de 40 anos, fez questão de mostrar a estampa das costas de sua jaqueta: Motoclube Trem das Onze, do Jaçanã. Para garantir um lugar na fila do gargarejo, ele chegou às 17 horas. Está impaciente: “É, até quando esperar para ver a banda da minha adolescência?”. O show começa com 16 minutos de atraso, mas Alexandre tem de aguardar outros 52 minutos até que a Plebe Rude toque a clássica canção “Até Quando Esperar” (1985). Neste ano, a banda de Brasília, que completa 35 anos, sobe ao palco com Clemente, da banda punk paulistana Inocentes, nas vozes e guitarra, Phillipe Seabra, também vozes e guiterra, André X no baixo e Marcelo Capucci na bateria. Surgida numa época em que a polícia batia em estudantes e a censura ainda perseguia os músicos, a Plebe Rude evita falar diretamente sobre a política. Estamos em 2016.

21h04 Júlio Prestes
“Quero ter olhos pra ver a maldade desaparecer”, declama a maranhense Alcione durante breve discurso, após abrir a apresentação no palco principal da Virada com sua versão em vozeirão para o clássico de Nelson Cavaquinho “Juízo Final” (1973). Enquanto ela discursa, o “fora Temer” se alastra pela plateia sem que a sambista pronuncie o nome do presidente interino, menos ainda o de Dilma Rousseff. Embora dilmista notória, Alcione se limita a criticar a extinção (já revogada) do Ministério da Cultura (MinC) e a ausência de mulheres e negros na equipe de primeiro escalão do governo provisório, que a artista parece já dar como definitivo. Sem contar com a amplificação do microfone de Alcione, o vendedor de cerveja também se manifesta.

IMG_3488

 

21h30 Boulevard São João

Enquanto a próxima atração não chega, no bulevar da avenida São João, a poucos metros da famosa esquina com a Ipiranga, o mágico Volckane entretém o público. Realiza aqueles truques de cartas, barbantes, elásticos e bolinhas que todos conhecem e todos se deixam iludir. Metade dos 50 anos de Robson Palazini, como está no RG de Volckane, foi dedicado ao ofício da mágica. Está feliz por circular entre a multidão. Seu desafio é levar a banqueta de madeira e a maleta até uma roda de pessoas e, em questão de segundos, atrair a atenção até mesmo dos mais incrédulos. Ele foi um dos 20 mágicos contratados para a Virada e receberá R$ 3 mil – quase três vezes mais do que faria numa festa infantil – para realizar performances durante duas horas. “Esse tipo de arte close-up, de proximidade, é muito desafiador. O público é muito diferente, mas também está sendo bastante receptivo.”

22h05 Av São João

No palco 100% devotado às mulheres da avenida São João, a funkeira carioca Valesca Popozuda faz a declaração de princípios sobre a quem pertence a programação gratuita e popular do evento: “Virada Cultural, baile de favela!”. O “jamais Temer” (ou “jamais temer”?) se projeta no paredão de um edifício e ecoa modestamente entre a plateia ultralotada, mas mais preocupada em dançar e se divertir que em protestar.

22h05 Boulevard São João
A performance de dança do grupo carioca #Passinho contagia a todos, exceto o cachorro Negrão, que late com insistência para oito integrantes. Alguns estão descalços e outros sem camiseta. Como se estivessem em suas próprias comunidades. MC Leone, uma espécie de mestre de cerimônias, tenta descontrair: “Temos até um convidado. Isso é fome de dançar”. Os donos do animal tentam repreendê-lo. Ele recua, para logo voltar à ação. Ao se aproximar da plateia, um dos dançarinos é atacado por Negrão. É mordido na perna, sem gravidade. Ele se aquieta. Mas, de repente, volta a morder de novo, agora na bermuda do mesmo dançarino. Alguém da produção tenta “comprar” um animal com um sanduíche. Os donos de Negrão desistem de assistir ao show e vão embora. A batalha do passinho, de um dançarino contra outro, pode recomeçar, sem mordidas.

 

22h15 MBoi Mirim

Cópia de image-2

“Falador passa mal, rapaz!” Max B.O. domina a plateia com seu grupo Partido B.O. e usando o bordão antigo dos Originais do Samba, mas está estourando o tempo – por conta de problemas técnicos, o show da banda pernambucana Nação Zumbi já vai atrasar uma hora. E os roadies estão no meio da rua com o equipamento, nem passaram o som ainda e já estão preocupados. “Aqui só pode tocar até as 23 hora”, murmura o barbudinho que cuida das guitarras. Numa confluência de ruas do M’Boi Mirim, na periferia sul de São Paulo, o palco descentralizado está cercado por uma barraca de yakissoba, uma mesa de quentão e uma notável guarnição policial – talvez o mais policiado palco das periferias.

22h28 barão de itapetininga

Há um ringue, e não um octógono de UFC, o esporte-pancadaria que virou moda no mundo todo, onde acontece hoje um tipo diferente de batalha. Duplas de atores comediantes improvisam no “Quintal’s Fun Championship”, diante de uma plateia que decide, na hora, qual delas deve prosseguir na disputa. Os temas são anunciados na hora pelo apresentador. Duas atrizes fantasiadas de paquitas são desafiadas a interpretar os papéis de patroa e empregada. O árbitro interrompe de tempos em tempos a “luta” e pede que elas revelem aquilo que não se diz, mas no fundo se pensa. É um besteirol, e é claro que a luta de classes acaba em sexo, com a empregada fazendo o papel de quem transa com o marido de quem lhe paga o salário. A plateia se diverte.

Batalha de improvisão
23h Ramos de Azevedo

A mineira Wanderléa inicia a apresentação que retoma o disco Feito Gente (1975), o primeiro de seus 16 álbuns que foi gravado ao vivo. É a segunda vez que uma das primeiras estrelas do rock brasileiro toca no Theatro Municipal – há dois anos, executou a íntegra do disco Maravilhosa (1972). Está elegante, e sua voz permanece tão precisa quanto há 40 anos. Fica à vontade com a plateia, que devolve com gritos de “divina”, “musa”, “maravilhosa” e “casa comigo”. Mas o disco marcou uma fase depressiva da carreira da artista, e o ar intimista marca a apresentação. Em “Segredo”, de Luiz Melodia, ela se entrega e se joga no chão, após os versos “eu tenho um recado/ um ódio interno marcado/ guardado/ fincado, pregado, lacrado”. Todos aplaudem de pé.

0h15 Dom Jose Gaspar
O meio quarteirão entre as ruas Barão de Itapetininga e 24 de Maio está lotado de jovens que dançam, conversam, bebem e fumam. Poderia ser um palco da Virada, mas é mesmo a discotecagem do DJ Junior Black. Ele se espreme na já apertada entrada de um cubículo que é o Rei dos Doces, ponto comercial de Wagner dos Santos, de 40 anos. Há cinco anos, em todas as sextas-feiras das 19 às 23 horas, uma multidão é atraída para esse calçadão no centro para curtir R&B, rap, swag e black music. “Este é o meu público, não é o da Virada”, orgulha-se Santos. Começa a tocar “Rap É Compromisso” (2001), de Sabotage, e a frase do comerciante passa a fazer todo sentido.

DJ Junior Black no Rei dos Doces
1h40 Rio Branco
Começa a ecoar um “Fora Temer” mais forte, provocado por Tatá Aeroplano, o músico paulista que está à frente da homenagem ao gaúcho Júpiter Maçã no palco roqueiro da Virada. O grito já havia sido ouvido no mesmo show com reações espontâneas da plateia ou poucas manifestações dos artistas que subiram ao palco, como a fluminense Bárbara Eugenia. Ela grita: “Fora Temer e Júpiter Maçã para sempre!”. Tatá parece querer mais reações do público, dos artistas, do Brasil. A reação não dura muito tempo. O jeito é tocar “Miss Lexotan 6 mg Garota” (1996), um clássico de Flávio Basso, fundador das bandas TNT e Cascavelletes e influenciador de várias gerações de roqueiros. Júpiter Maçã, como Basso era conhecido, morreu em dezembro do ano passado, aos 47 anos.

1h55 São João

Desde o início da Virada, já são 800 sanduíches vendidos n’A Verdadeira Casa da Mortadela. Silveira, batizado como Antonio Cavalcanti Vieira, morador do Grajaú, na periferia sul da capital, é quem está cuidando da lanchonete para Irineu Stalbo, um italiano de 86 anos que criou um dos clássicos de São Paulo em 1977. O lugar é discreto, corre-se o risco de passar desapercebido diante dele. Lá se mantém a tradição da Itália de tocar o sino sempre que alguém dá uma gorjeta. Até o fim da Virada, a meta é bater os 1.500 sanduíches, o triplo do que se vende em dias normais. Um casal que visivelmente não frequenta o centro, tampouco a cozinha, se espanta quando um dos atendentes usa uma pedra de amolar facas. Eles comem, pagam, e a campainha não toca.

2h42 avenida São João

Com 42 minutos de atraso, a cantora e compositora paulistana Céu sobe ao palco quando a plateia já revela irritação por esperar tanto tempo. Ouve-se na fila do gargarejo gritos de “ridícula” e “tá se achando, é?”. Mas ela logo começa a cativar o público indócil, já desde a primeira música, “Rapsódia Brasilis” (2016).

No mesmo palco 100% ocupado por mulheres em que Valesca brilhou horas atrás, a paulistana Céu grita um “viva Elza Soares!” toda vestida de vermelho. E não se furta a falar da política, mais exatamente às 3 horas e 4 minutos da madrugada de domingo: “Devolveram o ministério, falta devolver o governo. Fora Temer”. E não dedica a próxima música, “Amor Pixelado” (2016), ao paulista de Tietê Michel Temer: “Saiba, meu amor, cuidarei de nós/ mesmo quando eu for em busca de mim/ em busca do que faz você me amar”.

3h10 Arouche

“Eu não confio em você, sua bicha invejosa!”, repete em pique de rock’n’roll a banda Verónica Decide Morrer, uma atualização cearense dos históricos e andróginos New York Dolls. Vestido(a) de vermelho, o(a) vocalista dedica a apresentação “a todas as verónicas que são espancadas, humilhadas, rejeitadas, como eu e você”.

IMG_3508

 

3h19 Itapetininga

A vida cotidiana penetra a Virada, e vice-versa. Conforme a programação oficial se desacelera na alta madrugada, os notívagos que querem mais diversão se entrosam com a vida diária no centro da cidade velha. O bar Terraço da Barão vive momentos de glória, ao som de um forró moderno na voz de Wesley Safadão, que sai de potentes caixas acústicas e se alastra para os pés dos casais (de todos os sexos) que dançam entre as mesas postas no calçadão. Do lado de dentro do balcão, o trabalhador do bar se faz mídia e registra o momento em vídeo pelo celular, com um sorriso largo no rosto.

IMG_3510 (1)

 

3h30 Anhangabaú

IMG_3512

Um palco foi montado embaixo do viaduto do Chá para dar lugar ao teatro de musicais estilo Broadway abrasileirada, com versões “pocket” de espetáculos sobre Gilberto GilElis ReginaChorão e outros. A alta madrugada é reservada ao vaudeville andrógino dos Dzi Croquettes, grupo histórico dos anos 1970 homenageado pelo musical de mesmo nome. O grupo de homens musculosos e depilados seminus contrasta com a magreza peluda tipo Ney Matogrosso dos Croquettes originais, assim como a locução contrasta sem querer o momento atual de ruptura democrática com o idílio romantizado em torno do grupo setentista que desafiava normas de comportamento (“era tempo de ditadura”, “eles mandaram a ditadura para a puta que pariu”).

Interpretada originalmente por Elis Regina, a canção “Dois pra Lá, Dois pra Cá” (1974), de João Bosco Aldir Blanc, soa estranhamente comportada apesar do vestidão do performer. O discurso investe no discurso antipolítico tipo “fora todos”, demonizador da política, mas suficiente para fazer erguer na plateia um galho da árvore “fora Temer” que veio do cortejo do Tarado ni Você. Um dos atores ousa uma breve extrapolação do protesto genérico e indistinto, quando sugere a Marco Feliciano, Michel Temer e Eduardo Cunha que “vão dar meia hora de cu”. A plateia se divide entre os que aplaudem, os que tateiam mais um “fora Temer” e os que, cansados de guerra, dormem nas cadeiras de plástico do teatro ao ar livre.

IMG_3517

 

3h45 Cidade Tiradentes

mano

Na Cidade Tiradentes, extremidade leste da capital, o rapper paulistano da sul  b Brown termina o show e seus seguranças fazem um corredor polonês para ele voltar ao camarim. Brown fura o bloqueio dos seguranças e vai de encontro à grade onde os fãs berram feito loucos. Deixa-se abraçar por eles, ser agarrado, faz selfies, sorri com dentes que parecem ter sido recentemente embranquecidos com laser. Mano Brown está em casa. Sua mulher e empresária, a atenta Eliane Dias, vai pinçando meninos e meninas da plateia e elevando até o palco para dançar com o rapper.

Apesar da alegria, de um show abertamente de entretenimento, enxertado com disco music e soul romântica, ele mostra como sempre que não veio ao mundo a passeio: “Todo mundo brabo. No trânsito, todo mundo general. Não tem humildade, falta sensibilidade. Tanta brabeza não impediu que a gente tomasse um golpe (…). Nossa mente fechou, se alienou. Acredito na nossa juventude, na sua capacidade. Mas por enquanto vocês vão conviver com um governo de ladrões. Tomamos um golpe, e seu voto não valeu nada”. Parecia até que já tinha ouvido os grampos do ministro interino Romero Jucá que seriam divulgados na segunda-feira pós-Virada.

4h12 Paissandu

IMG_3530

IMG_3521

Um dos oásis na madrugada agressiva é o chão do largo do Paissandu, terra simbólica da cultura afrodescendente paulistana, devotado nestas 24 horas às chamadas culturas tradicionais, populares, negras. Uma plateia de paulistanos e não paulistanos, de forasteiros e descendentes de outros paulistas e brasileiros, parece confirmar que, dificuldades à parte, a Virada é para virar, amanhecer e continuar. “Abre a roda, por favor”, pede a solista ao público ávido que parecer querer ser a própria roda viva.

 

4h45 Rio Branco

No trajeto dos cortejos, é a vez da “Parada Carnavalizada”, que aglutina os clubbers da festa Mel, o músico eletrônico paraense Jaloo e as comissões de frente da Mocidade Alegre e da Acadêmicos do Tucuruvi. Em macacão sintético moderno, Jaloo evolui dentro da corda que envolve o trio elétrico, ao lado das comissões de frente fantasiadas. Do lado de cá da corda, bem colados aos passistas fantasiados, dois homens assistem abraçados ao semicarnaval quase animado. Um deles, de jaqueta do Black Sabbath, conduz com carinho o outro, que é cego, no compasso do som gravado das percussões de escola de samba.

IMG_3538 (1)

 

4h59 ipiranga com são joão
IMG_3545 (1)

O folião dark confabula com dois amigos na esquina “onde cruza a Ipiranga e a avenida São João”, fantasiado como desses personagens de filme hollywoodiano de terror. É a morte? “É uma morte meio gay”, desvenda um dos colegas.

5h08 São João
IMG_3548

Misto de rapper e funkeira vinda da zona leste paulistana, a “rainha do dancehall brasileiro” Lei Di Dai se apresenta em nome das minorias, para uma plateia reduzidíssima em que se destacam as travestis, as transexuais, as “verónicas espancadas, humilhadas, rejeitadas”.

IMG_3553

Simultânea ao show de Lei Di Dai, a manutenção passa pesada, empurrando com um jato d’água montanhas de lixo do asfalto da São João e das ruas perpendiculares para as sarjetas. O sinal está vermelho e quem chegar para o turno de diversão da manhã não perceberá nem um centésimo das toneladas de lixo que a alegria da festa já produziu.

 

 

5h46 Arouche

IMG_3564

Vestido de militar tipo Sgt. Pepper (mas em tons de azul), o baiano Luiz Caldas explica para o público iconoclasta do Arouche que perdeu os preconceitos que tinha entre os 7 e os 16 anos de idade, período de iniciação profissional, quando tocava todos os estilos musicais e esmerilhava a técnica guitarreira. Sua apresentação reflete a mistura, com versões em inglês embromation para “Three Little Birds” (1977), do jamaicano Bob Marley, e “Sultans of Swing” (1978), dos britânicos Dire Straits, mais “Frevo Mulher” (1979), do paraibano Zé Ramalho, citação saudosa ao mestre pernambucano Luiz Gonzaga e muita axé music baiana. A plateia é reduzida, animada e não dá brecha para o “fora Temer”. Às 6h15, ao som de “sene sené sené, sené Senegal”, já é quase manhã, a Virada começa a desescurecer: virou!

 

IMG_3571

 

7h10 República

IMG_3576

O rapper vindo da zona norte paulistana Rashid dá boa noite e imediatamente se corrige: está acostumado aos shows noturnos, o correto é dizer bom dia. Pergunta quem aqui sonha com uma média no café da manhã, canta o demitido que não tem coragem de contar à família da demissão, elogia Cristo. “Não descendo de escravos/ descendo de reis que foram escravizados”, proclama, do topo da manhã em que já brilha o sol que Alcione chamou na noite baixa do sábado chuvoso. O “Temer jamais” resiste nos sulfites pregados em diversos pontos do palco.

 

IMG_3587

 

7h45 Paissandu

As culturas tradicionais amanhecem firmes e fortes ao lado da Igreja de Nossa Senhora dos Homens Pretos do Rosário, em frente à Galeria do Rock. É a vez da Companhia de Moçambique Unidos de São Benedito, de Taubaté, interior paulista, formada por homens e mulheres, jovens e velhos, todo(a)s preto(a)s.

IMG_3598

 

9h29 São João

IMG_3602

Acompanhada por plateia reduzidíssima e calorosíssima e pelo mestre conterrâneo de guitarradas Manoel Cordeiro, a paraense Fafá de Belém explode a manhã azul ao som de música chamada “brega”, o “É o Amor” (1991) dos goianos Zezé di Camargo & Luciano e a “Nuvem de Lágrimas” (1990) dos paranaenses Chitãozinho & Xororó. O tempo passa, o tempo voa, e só desse modo transversal, colateral e intimidado a música sertaneja (tipicamente paulista apesar dos preconceitos paulistanos) consegue adentrar a Virada Cultural, de resto refratária à caipirez e aos nossos próprios sertões.

 

10h05 República

Com repertório ainda curto, mas estrutura já ultraprofissional (e dançarinos exímios), o incandescente MC Bin Laden eletriza a plateia da manhã na praça da República, ao som, principalmente, de “Tá Tranquilo, Tá Favorável”. O segurança que protege o palco e o artista de seus próprios fãs tapa os ouvidos, em desgosto aparente. Quando Bin Laden interpreta o clássico “Rap das Armas”, o segurança olha para ele de soslaio, aparentando desgosto ainda maior.

IMG_3617

Como aconteceu na apresentação de Rashid, Jesus Cristo toma a frente de Michel Temer na ligeireza do discurso do dono do microfone. Dilma Rousseff, que não é Michel nem Jesus (nem homem), permanece esquecida e escanteada, seja pelo artista, seja pela plateia. Tá tranquilo, tá favorável.

 

 

10h30 Ibirapuera

image

Estamos longe do centro, mas também das periferias, no parque Ibirapuera, na parte mais rica da zona sul paulistana. Um menino que detesta Mozart acha uma violência levá-lo a um lugar no qual o som da Orquestra da Baviera espalha “As Bodas de Fígaro” por todo canto. É uma apresentação nos fundos do Auditório Ibirapuera, que engaja os pais e libera os moleques. Mas há as compensações: oficinas para fazer aeromodelos, até com o motorzinho para fazê-lo funcionar; escorregadores infláveis de 4 metros de altura; esculturas com bexigas; oficinas de tatuagens temporárias e aulas para as crianças brincarem com tintas naturais; ioiôs e bambolês abandonados no gramado.

Para comer, nada das guloseimas tradicionais entupidas de açúcar. Há uma preocupação com as comidas. O takoyaki (bolinho de polvo grelhado) tem uma filinha enfrentável; o café com calma na bike food demora, mas compensa. Quem levou cachorro, mesmo os mansinhos, levou com uma focinheira – afinal, tem horas que é o menino que morde o cachorro.

13h25 Anhangabaú
“A TV é uma fábrica de produzir doidos, como disse Stanislaw Ponte Preta”, declama a atriz Cláudia Raia, no teatro improvisado debaixo do viaduto do Chá. A esta altura do espetáculo Raia 30 – O Musical, dirigido por José Possi Neto, a atriz global, que também é bailarina, cantora e pioneira na produção de musicais no Brasil, faz uma retrospectiva de sua carreira. O cenário perde a força diante de um palco aberto e fortemente iluminado pela luz do dia. Mas a troca de figurinos ocorre de forma tão perfeita que o público se impressiona, num ritmo de três mudanças de roupas a cada cinco minutos.

13h51 Anhangabaú

Monica Estela no espetáculo Everybody
Na chamada Ocupação Anhangabaú, o Snuff Puppets, grupo teatral australiano que veio pela primeira vez ao país, encerra sua apresentação de Everybody, e as pessoas se aproximam do elenco. A professora do ensino básico Maria Rodrigues de Carvalho Perroti, de 62 anos, é uma delas. A caminho de ir para casa, depois de assistir ao show da paraibana Elba Ramalho, ela decidiu parar para ver a performance. Não satisfeita, encontra a atriz Mônica Estela e faz uma pergunta sobre um bebê que fuma e o conceito geral do espetáculo.

Atenciosamente, a atriz de 29 anos explica que o bebê vira um adulto, de terno e gravata, fuma cigarros, anda com pressa, cria brigas. E que a peça fala do nascimento até a morte e os processos internos e externos pelos quais passam as pessoas. Mônica traduziu as falas na véspera da apresentação, que faz parte do Festival Australia Now, de ampla repercussão em outros países. É a primeira Virada dela, que por pouco não pegou uma de suas criações artísticas e saiu pelas ruas do centro para apresentar aos paulistanos seu personagem Janus, ou Januário. É um boneco feito de termoplástico, um material novo, que permite que seja confeccionado com grande riqueza de detalhes. Aprendeu a técnica com a cultuada figurinista, bonequeira e artista plástica russa Natacha Belova. Janus tem 1,77 de altura, exatamente como a atriz.

14h29 Praça Dom José Gaspar
Vinte saraus se revezam em um único palco da Virada. No ano passado, eram dois palcos. “Cortaram o orçamento”, explica Carlos Moura, editor do jornal Centro em Foco, uma publicação gratuita com tiragem de mais de 20 mil exemplares. Toda sexta-feira do mês, ele e um grupo de amigos e interessados, como advogados, escritores, publicitários e músicos, se reúnem no segundo andar do restaurante Cama e Café, na rua Roberto Simonsen, no centro.

15h25 Júlio Prestes

O rapper Criolo, do Grajaú, periferia sul da capital, veste duas camisetas em um dos shows mais concorridos da Virada. A primeira delas tem a inscrição “Democracia 1982” (em alusão ao Corinthians) e a outra, “Ainda Há Tempo”, nome de seu primeiro álbum, de 2006, recém-relançado. Ele não cita políticos, mas o produtor musical paulistano Daniel Ganjaman bolou uma forma de chamar a atenção do público para o momento atual. Quando viu, Criolo apoiou na hora a iniciativa. No imenso telão atrás do palco, são projetados os dizeres “Temer Jamais” em diversas cores, durante poucos segundos. A plateia vai ao delírio e começa a gritar “Fora Temer”.

Na área VIP, o ex-senador Eduardo Suplicy e ex-secretário municipal de Direitos Humanos entra na onda. De espírito jovem, está vestido com uma camiseta vermelha da Sociedade Paulista de Cultura de Boteco, que ganhou do jornalista Miguel Icassati no meio da Virada. Veste ainda uma bermuda, que parece emprestada dos filhos. Também nesse local está o pernambucano Nelson Triunfo, considerado um dos pais do rap nacional e reverenciado por MC Dan Dan, de Diadema, na Grande São Paulo, que é companheiro de palco de Criolo e mais aguerrido para provocar o público a se manifestar.

Criolo e MC Dan Dan
Num show que ganha os ares de um culto pós-moderno, Criolo prefere provocar a consciência dos espectadores sobre temas como amor, violência, cidadania e justiça social. Quando um grupo de cinco estudantes invade a área VIP com uma faixa de protesto e é controlado de forma enérgica pelos seguranças, o rapper pede para não usarem de violência e provoca: “Nas quebrada que a gente veio, só de tá vivo já é um protesto, tá ligado?”.

15h15 Arouche
A área de imprensa do show da banda oitentista Metrô é praticamente uma embaixada informal da França. A paulistana Virginie, a vocalista, festeja o show que a precedeu, do forrozeiro paraibano Genival Lacerda. “Ter entrado depois de Genival foi a cerreja do bolo”, ela diz, com um sotaque francês que não havia em 1988. Sua voz continua pequena e linda, mas ela já não alcança certas notas. “Preciso de ajuda, gente!”, conclama, ao cantar “Olhar” (1985).

O Metrô nos deu muitas coisas além da batida new wave com defeito de fabricação: nos deu o La Tartine e o jeito blasé do 16º arrondissement. Virginie Adèle Lydie Boutaud-Manent foi uma das musas seminais dos anos 1980. Ex-top model, conheceu os colegas de música no Lycée Pasteur, onde estudavam francês. Em uma época estridente, em que todos buscavam ocupar lugares de líderes geracionais, ela cantava com a delicadeza de uma Nara Leão e tinha um ar nonchalance aristocrático.

Nesse retorno, após 30 anos sem se apresentarem ao vivo para plateia tão expressiva, eles estão à vontade. Não têm mais a obrigação de fazer história. Misturam a seus hits imemoriais coisas como a folclórica “Frères Jacques”; “I Feel Love” (1977), da norte-americana Donna Summer; e “Me Dê Motivo” (1983), do carioca Tim Maia, sem nem ficarem vermelhos. Sândalo de Dândi.

15h35 Praça Julio Mesquita

image

O cabelo é tão branco que já ficou com aquele tom amarelado dos castigos do sol e da rua. O velho olha a rua através da grade, com o olhar voltado para dentro de si mesmo. Ele é um dos 210 abrigados provisórios do Centro Especial de Acolhida de Idosos, um prédio histórico a igual distância dos palcos Arouche e Palco São João. A qualquer momento terá que deixar sua casa provisória. Anda arrastando uma perna e não quer conversa. “Não gosto de música. Não me lembro do que eu gostava antes de não gostar. Não vi nada dessa festa. Por que você não me deixa descansar?”.

17h Parelheiros
image-4

O paulistano da zona norte Emicida encomendou um pastel de cima do palco. Brinca que o pastel não chegou. Os jovens fumam narguilé em rodas. As barraquinhas da praça em frente ao Palco Parelheiros, na periferia sul da capital, vendem bolo de cenoura, yakissoba, espetinho de churrasco, vinho quente. E dão um clima de quermesse ao show do rapper, que estende uma camiseta na caixa de retorno à sua frente: “Temer Jamais”.

O público se esgoela quando ele canta “Hoje Cedo” (2013), seu dueto com a baiana Pitty. Mas aí ele contrabandeia versos (“alegria era o que faltava em mim/ uma esperança vaga/ que eu já encontrei”) e fica melhor ainda. Tem menino de 11 anos berrando versos do carioca Cartola e se você já viu cena mais bonita conte pra gente.

image-2

A Virada, que amanheceu há mais de 12 horas, anoitece em Parelheiros. De todos os rolês pela periferia, Parelheiros é o mais alegre e colorido – mais alto astral, inclusive, que grande parte dos shows da Virada no centro. Cidade Tiradentes é cinza e sombria. M’Boi Mirim é recatada e sincera (“Hey, DJ, vai tomar no cu!”, berrava o público por conta da insistência do programador em tocar sempre a mesma música).

18h18 Júlio Prestes

Cabe ao Nação Zumbi, grupo pernambucano herdeiro do manguebit, o show de encerramento do palco principal da Virada Cultural. Também cabe a eles um dos posicionamentos mais críticos sobre a situação política que o Brasil atravessa. “Do cinismo ao sinistro, estamos passando por uma fase de sinistro. E isso depende de nós. Não nos calemos. Quando se cala, o cidadão é apagado. Mas nós não estamos apagados, estamos acesos. Fora Temer. Temer Jamais”, diz Jorge du Peixe, logo seguido pela plateia aos gritos de “Fora Temer”.

O show é marcado pela sucessão de hits dos discos da banda. O vocalista, que substituiu o fundador Chico Science, morto em 1997, lembra dos 20 anos do álbum Afrociberdelia (1996), e não é preciso muito para mostrar a atualidade das composições. Apesar de tudo que aconteceu de lá para cá e da recolocação do país perante o mundo, o Brasil da Virada Cultural 2016 ameaça voltar a ser a reprodução de “Manguetown”, de exatos 20 anos atrás: “Estou enfiado na lama/ é um bairro sujo/ onde os urubus têm casas e eu não tenho asas/ mas estou aqui em minha casa/ onde os urubus têm asas/ vou pintando, segurando as paredes no mangue do meu quintal.” O show se encerra às 19h27. O recado foi dado, no palco e, principalmente, nas plateias.

LogoSemMargens

Catto

$
0
0

Chego a Belém justamente no momento em que Filipe Catto faz sua estreia na cidade, na 11ª edição do festival Se Rasgum. O teatro está lotado, tem gente sentada no chão nessa noite de quarta-feira. Não consigo entender: quem é ele? Fora Elis Regina, que tipo de gaúcho seria capaz de provocar essa euforia num Dia de Finados?

Filipe lembra a história de quando, uns 8 ou 10 anos atrás, quando vivia em Porto Alegre, teve um amigo de Belém, e de como a cidade na Amazônia que o amigo lhe descrevia lhe pareceu intangível, com sua comida própria, sua música própria, sua cultura própria, suas histórias tão peculiares.

Contou que nunca imaginou fazer uma viagem do Rio Grande do Sul ao Pará, parecia tão distante e impossível de se chegar. Enfim, ali estava – e agora com status de ídolo popular precoce.

Filipe se move como Ney Matogrosso. Isso me lembrou divertidamente a música do Maroon5, “Moves Like Jagger”. Tem agudos de Ney Matogrosso. Tem gestos de Ney Matogrosso. Mas ele tem alguma coisa que o liberta de Ney Matogrosso e da minha sanha comparatista: ele acredita no que canta, ele canta com vontade e uma potência vocal extraordinária. E tem uma juventude e uma autoconfiança exasperantes, daquele tipo de juventude que parece indestrutível. Eu me lembro de ter ouvido uma ou duas de suas músicas no computador, e não tinha me detido porque não sabia de onde partia a música – o show ao vivo é cem vezes melhor.

Então, quando ele começou a cantar os versos de “O Fundo do Coração”, de Júlio Barroso e a Gang 90, eu achei que ele tava de brincadeira. Ninguém canta Júlio Barroso hoje em dia, não há tal compreensão de sua essencialidade. Na versão original, Júlio Barroso se acompanhava ao violão com sua voz gutural e Taciana Barros fazia o refrãozinho new wave. Filipe trocou o violão por uma tecladeira e bateria e a interpretação ficou impossível de ser passada adiante, porque o cantor pôs veneno nela e a reinventou.

A canção na qual Filipe Catto amarra as pontas do amor e da morte, “Auriflama”, “a morte é a esquina onde o amor termina”, tem um componente de eternidade pop.  É construída em torno do verso do escritor angolano José Eduardo Agualusa (musicado por Thalma de Freitas). Há de fato uma alma lusa sob o sorriso de kamikaze de Filipe Catto, um jeito meio fadístico que comparece quando ele se agarra à repetição de frases como “depois de amanhã”. Penso bobamente que não haveria George Michael ou Freddie Mercury ou outro ídolo anglo-saxão capaz de igualar esse sentido português da palavra que Catto domina com tanta maestria.

A plateia conhece todas as canções de Filippe: “Redoma”, “Tomada”, “Rima Rica”, “Saga”. Canta com ele “Adoração”. Luz, Vida, Arte: ele manipula clichês com tal segurança que os despe de suas fragilidades demagógicas. Filipe exerce sem cerimônia a arte de ser doce sem ser servil. Bajula o público, mas o mantém a uma distância prudente com uma autoridade sub-reptícia. Declama à capela uma música de Joelma, “Cavalo Manco”. Knock out: a plateia entrega os pontos.

Nunca há o tédio no show de Filipe Catto. Ele rege a atenção do público. Ninguém sai antes do final, como num jogo de pôquer. Pelo contrário, vão indo para a frente, cada vez mais para a frente, para terminar numa tietagem coletiva como num show de Roberto Carlos. Que música brasileira doida é essa que gesta figuras assim como se não houvesse prazo para exaurir a jazida?

Filipe Catto se apresenta no Se Rasgum - foto divulgação

Filipe Catto se apresenta no Se Rasgum – foto divulgação

 

(Jotabê Medeiros viajou a Belém a convite do festival Se Rasgum.)

Belchior: ano passado eu não morro

$
0
0

Lançado em 2004, meu livro Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (Boitempo) anda tão desaparecido como andou Belchior nos últimos anos de uma GRANDE vida. Em homenagem à morte do GRANDE artista e pensador cearense em momento histórico tão eloquente, resgato aqui (*) (com alguns reparos e penduricalhos) o capítulo devotado ao GRANDE homem no livro protagonizado por Roberto CarlosErasmo CarlosWanderléa etc.

Viva BELCHIOR.

 

Viva Belchior (1946-2017)

Não quero lhe falar, meu grande amor…

Havia perigo na esquina, e o perigo se chamava Belchior, que tanto Roberto como Erasmo Carlos notavam com simpatia nos primeiros minutos. Mas espere um pouco.

Antes disso, procurando solapar o silêncio imposto pelo regime ditatorial e tentando reatar o compromisso de brasilidade por através do silêncio, Milton Nascimento deu bela voz, em 1970, a um manifesto sul-americano chamado “Para Lennon e McCartney” e composto por Lô Borges, Marcio Borges e Fernando Brant, três integrantes do que passaria para a história como clube da esquina, de que Milton seria líder e porta-voz principal. Vociferavam os da esquina, querendo atingir John Lennon e Paul McCartney: “Eu sou da América do Sul/ eu sei, vocês nem vão saber/ mas agora sou caubói/ sou do ouro, eu sou vocês/ sou do mundo, sou Minas Gerais” [1]. Estavam preocupados em dinamitar os restos mortais dos Beatles e em se revalidar como cidadãos do mundo, mas John e Paul continuaram sem saber do lixo ocidental cá de baixo. O movimento mineiro ganhou força e prestígio, mas nunca chegou a adquirir contornos de penetração popular como os que conseguiam artistas “do povo” que varriam um espectro entre Roberto Carlos e Raul Seixas.

Quase concomitantemente aparecia um “clube da esquina nordestino”, construído de peculiaridades porque ficava no rincão ainda distante que era o Ceará e porque idolatrava apaixonadamente o tropicalismo personalista de Caetano Veloso. Estreando em disco em 1973, o dito Pessoal do Ceará (que, ao menos no LP Meu Corpo – Minha Embalagem – Todo Gasto na Viagem, se restringia a Ednardo e ao casal Rodger Rogério e Tetty), procurou fincar bandeira vinda de longe na história do pop brasileiro. Para aquele disco, Ednardo elaborou uma adaptação da passada “Para Lennon e McCartney” a que batizou “Terral”, que dizia mais ou menos assim: “Sou da América/ sul da América/ South America/ eu sou a nata do lixo, eu sou o luxo da aldeia, eu sou do Ceará”. Pouco depois, Ednardo voou solo e lançou O Romance do Pavão Mysteriozo (RCA Victor, 1974), encetando belíssima confissão de inadaptação na faixa “Pavão Mysteriozo”, mas de modo geral passando em brancas nuvens [2]. Por aqueles dias, o conterrâneo Raimundo Fagner também estreara em disco com Manera Fru Fru, Manera (Philips, 1973), homenageando-criticando seu ídolo Roberto Carlos (numa versão áspera do blues-iê-iê-iê “Nasci para Chorar”, vertido ao português em 1965 por Erasmo Carlos) e partindo para um discurso equivalente, como em “Cavalo Ferro”: “Montado num cavalo ferro/ vivi campos verdes, me enterro/ em terras tropicamericanas”. Em comum, todo aquele pessoal tinha a vontade ainda indecisa de migrar para o sul e fazer sucesso nacional (como haviam feito Caetano e Gil, vindos da Bahia, ou Milton, egresso de Minas Gerais). Estreavam no burburinho que ainda restava da cultura de festivais, embora houvessem, atrasados e mais longínquos, perdido o bonde do quiproquó de 1968. Ednardo, nascido em Fortaleza, em 1945, e Fagner, nascido em Orós, em 1950, viram de longe o rebuliço dos festivais da Record, tentando fazer o deles no microcosmo cearense e no ambiente universitário que frequentavam.

Belchior, 1974Eles tinham um amigo/parceiro chamado Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes. Nascido em Sobral, em 1946, 13º filho de uma família que chegaria aos 23, o futuro Belchior fora cantador de feira e poeta repentista em sua terra natal. Semi-migrou para Fortaleza para também se integrar à universidade (num inacabado curso de medicina). Iniciou o traumático período migratório vencendo no Rio de Janeiro o IV Festival Universitário da MPB, em 1971, com “Na Hora do Almoço”. Esperou ainda três anos para ter seu primeiro disco, juntando-se às estreias de Fagner e de Ednardo com Belchior (lançado pela gravadora brasileira Chantecler, em 1974), um disco todo pós-tropicalista, todo concretista, todo arroubado, todo arrojado.

Já de abertura, em “Mote e Glosa”, iniciava agressivamente nordestino, repetindo 28 vezes: “É o novo”. Em seguida, em “A Palo Seco” (que Ednardo lançara no disco do Pessoal do Ceará), de nome emprestado de poema de João Cabral de Melo Neto, aderia à retórica utópica sul-americana. “Tenho 25 anos de sonho e de sangue/ e de América do Sul/ por força deste destino/ o tango argentino/ me vai bem melhor que o blues”, cantava, inserindo melancolia própria no ideário da nova música cearense, num tema que era bem mais blues que tango. A voz anasalada, desencontrada, bem sertaneja, conduzia a um recado final de poesia dura e concreta, que era rascante, quase assassino, talvez suicida: “Eu quero é que esse canto torto feito faca corte a carne de vocês”. Quando o recado revoltado não vinha com esse grau de objetividade e agressividade (coisa que acontecia também na canção de ódio familiar “Na Hora do Almoço”, francamente influenciada pela tropicalista “Deus Vos Salve Esta Casa Santa”, de 1968, de Caetano Veloso e Torquato Neto), o disco evitava ceder ao palatável, recaindo no discurso concretista muito influenciado pelo Walter Franco de Ou Não (Continental, 1973) e pelo breve Caetano Veloso de Araçá azul (Philips, 1973) de “Bebelo”, “Máquina” (em duas versões) e “Cemitério” (esta influenciada pela tropicalista “Miserere nobis”, de Gilberto Gil e Capinan). A linguagem estava interditada, Belchior tentava fazer poesia visual com sua garganta inóspita, quase fanha, sob abundantes arranjos de cordas – e com muito sentimento blue de revolta.

Soou agressivo e hermético, passou em brancas nuvens, um pouco como já acontecera e continuava acontecendo aos parceiros de ex-exílio cearense. O destino reservava a Belchior, no entanto, uma rota diferente da de seus colegas originais, pelo menos numa primeira fase das carreiras de todos eles, a dos herméticos anos 70. Se Fagner e Ednardo conquistaram prestígio razoável e popularidade regular com receitas de concretismo, densidade poética e hermetismo, Belchior caiu primeiro no agrado do grande público, principalmente a partir do fato de Elis Regina tê-lo tomado como compositor-revelação e gravado, num só golpe, dois futuros sucessos tanto do campo da MPB intelectualizada quanto do pop de apelo de massa: “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida”. As duas abriram o disco Falso Brilhante (Philips, 1976), em que Elis aderia com vivacidade às utopias latino-americanas, associando Belchior com a panfletárias “Gracias a la Vida”, da chilena Violeta Parra, e “Los Hermanos”, do argentino Atahualpa Yupanqui, além de três panfletos mineiros-cariocas/suburbanos da dupla João Bosco/Aldir Blanc. (Elis e Wilson Simonal foram os primeiros intérpretes a gravar a breve dupla Fagner-Belchior, ambos em 1972, ela com “Mucuripe”, ele com “Noves Fora”).

Alucinação, 1976, de BelchiorO disco de Elis saiu quase simultaneamente a Alucinação, que marcaria a estreia de Belchior no conglomerado Philips (que já havia perdido Fagner, após um único disco gravado, mas queria manter a mítica da gravadora que possuía os mais contemporâneos e acachapantes artistas em seu elenco). Mas antes “Como Nossos Pais” já estava em circulação na voz de Elis, na temporada do show Falso Brilhante, que só mais tarde seria transformado em disco. “Paralelas” também colocaria por essa época Belchior em evidência, dessa vez na voz de Vanusa [3], mas as duas gravações de Elis foram essenciais para que o até então marginalizado cearense passasse a ter existência artística para todos os efeitos. Para Belchior, o advento de Elis podia significar sua admissão num lugar cobiçado, mas que não era bem dele – cinco anos mais novo que Roberto e Erasmo, quatro anos mais novo que Caetano e Chico, chegando atrasado ao cenário nacional, Belchior não era nem da geração daqueles todos nem da geração seguinte; estava sentado à beira do caminho das gerações. Para Elis, no entanto, aderir ao discurso de Belchior em “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida” embutia significados multifacetados – o principal dos quais um manifesto contra sua própria geração, uma corajosa autoprovocação dirigida não só à sua geração platinada como a ela própria, individualmente.

O arranjo de “Velha Roupa Colorida” descoloria um pouco a canção como um todo, por não primar pela sutileza. Mas colocava Elis numa posição estranha, de criticar as velhas roupas coloridas da geração hippie (à qual ela nunca se integrara de fato, chegando ao extremo de se opor com fúria ao lado mais colorido do hippie brasileiro – ou seja, a tropicália), e de engavetar nisso aí uma revisão cruel de tudo que ela própria vivera. “Você não sente, não vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo/ que uma nova mudança em breve vai acontecer/ o que há algum tempo era novo, jovem, hoje é antigo/ e precisamos todos rejuvenescer”, cantava Elis, feito uma Janis Joplin entupida de blues. Já intérprete veterana, ela estava nisso alertando para a necessidade de renovação que vivia a MPB, e fornecia a Belchior o posto de arauto de tal nova geração, que ela por sua vez estava vindo anunciar. Belchior, quando escrevera tais versos, pensara em seus ídolos e heróis, que por ansiedade ou angústia de influência ele sentia necessidade brava de suplantar. Citava vários deles no segundo bloco da canção, quando executava um jogo concretista espelhado entre “never” e “raven”, ou seja, entre “nunca” e “corvo” – citando literalmente o poema “O Corvo” e seu autor, o norte-americano Edgar Allan Poe. Entre citações entrecruzadas aos Beatles, aos Rolling Stones, a Bob Dylan, a João Gilberto (“amor e flor”) e a Caetano Veloso (“cabelo ao vento”), o corvo de Poe voava do século XIX para cá, transmutando-se na poética de Belchior primeiro no “Blackbird” dos Beatles, depois no “Assum preto” de Luiz Gonzaga: “Blackbird me responde: ‘Tudo já ficou pra trás’”, “Assum preto me responde: ‘O passado nunca mais’”. Ironicamente, era o passado que dizia ao poeta narrador que o passado morrera; e assim fazia também Elis Regina, cantando tal canção e pensando (mas apenas em parte) estar alfinetando os tropicalistas, ídolos coloridos inequívocos de Belchior. Deslocando o eixo para lá do heroísmo musical, a canção pretendia ser mesmo uma crítica de geração, inconformada com o aborto da efervescência dos protestos pré-AI-5: “Nunca mais você saiu à rua em grupo reunido/ o dedo em V, cabelo ao vento, amor e flor, que é do cartaz?/ no passado a mente, o corpo é diferente/ e o passado é uma roupa que não nos serve mais”. Ambíguo, o narrador pretendia comemorar o passar do tempo, avisando que a roupa antiga das passeatas e dos protestos ficara puída. Mas isso era menos uma celebração que um lamento, em que a identidade bipartida Elis/Belchior conclamava de volta os seus, criticando a geração e meia que ambos, juntos, constituíam. Política de autocrítica, lamentava-se a acomodação dos antigos e novos passeantes, também porque não se podia condenar a ditadura que enfiara a todos debaixo da cama do medo e do terror noturno. Elis, frequentemente suspeita de reacionarismo, era quem peitava chamar de volta, mesmo que discretamente, o espírito “passado” das passeatas. Porque, ora, não era justamente o passado, o pássaro mítico nordestino assum preto (aquele dos olhos furados para que cantasse melhor, aquele que fizera Gal Costa cantar melhor numa declaração de amor a Luiz Gonzaga), quem acusava a morte do passado?

O jogo ambíguo e indeciso se completava em “Como Nossos Pais”, canção-mito da MPB pela interpretação sofrida e lancinante que Elis Regina lhe imprimiu. Ali estava de novo a provocação inconformada sobre o abandono da cultura de passeatas e festivais: “Já faz tempo eu vi você na rua/ cabelo ao vento, gente jovem reunida/ na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais”. Internalizava-se a dor provocada de fora para dentro pela censura militar, e o narrador ousava acusar os seus (e a si próprio) de adotarem procedimento equivalente a de seus pérfidos pais (os militares, bem entendido): “Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que fizemos/ ainda somos os mesmos e vivemos/ ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. A primeira mensagem era “ainda somos os mesmos e vivemos” – uma elegia implícita (e apenas retórica) a quem optara pela resistência, pela luta armada e, muitas vezes, pela morte. No segundo turno virava “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais” – corrosivo por demais, o narrador equiparava a juventude de 1976 a seus carcereiros, ou, menos, os jovens entrando agora na música com vários ídolos de 1968 agora esmorecidos. Uma referência mais direta à nata pensante da MPB pré-AI-5 se dava no trecho “hoje eu sei que quem e deu a ideia/ de uma nova consciência e juventude/ tá em casa guardado por Deus contanto vis metais”. Os mais atingidos aqui eram Roberto Carlos, ídolo iê-iê-iê transmutado em 1976 em Frank Sinatra pós-juvenil [4], e os tropicalistas, que mais que ninguém haviam desferido novas consciência e juventude a quem os recebera de queixo caído em 1968. Elis, militante e resistente em 1968, pregava-se a peça da autocrítica, querendo metabolizar em 1976 o que não acreditara ter feito em 1968. Belchior criticava a tudo e a todos, feito roleta russa de metralhadora giratória, se é que isso existia.

Havia lotes de decepção ambígua na longa letra de “Como Nossos Pais”. Em “viver é melhor que sonhar/ eu sei que o amor é uma coisa boa/ mas também sei que qualquer canto/ é menor do que a vida de qualquer pessoa”, ao mesmo tempo suspeitava da veracidade do amor e desdenhava do poder mítico da canção, para ele ainda menor que a vida cotidiana de cidadão qualquer – noções de homens como Rogério Duprat e Tom Zé, anti-heróicos e anti-heróis por princípio e ética, estavam impregnadas no coração antiestelar de Belchior. Em “Por isso cuidado, meu bem, há perigo na esquina/ eles venceram e o sinal está fechado pra nós/ que somos jovens” colocava frente a frente e cara a cara o “tudo é perigoso/ tudo é divino, maravilhoso” de Caetano e Gil e o “sinal fechado” de Paulinho da Viola – quem vencera fora o espalhafato talvez vazio da tropicália, quem perdera fora a consciência provavelmente contrita do samba pós-bossa nova; mas também quem vencera fora a repressão militar, quem perdera fora a juventude idealista destroçada pelo AI-5. Enfim, em “nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam, não/ você diz que depois deles não apareceu mais ninguém/ você pode até dizer que eu tô por fora/ ou então que eu tô inventando/ mas é você que ama o passado e que não vê/ que o novo sempre vem”, Elis e Belchior se uniam para decretar, uma vez mais, a falência do passado e para celebrar o iminente advento do novo. Elis tentando suicidar-se, Belchior tentando ser o novo, encetavam um inédito brado de ruptura, que entretanto era muito mais textual que musical (e portanto parecia bem menos novo que a antiga tropicália).

A convivência entre o velho e o novo, ou melhor, entre o velho precoce e o novo precocemente envelhecido, entre Elis Regina e Belchior, transformava a canção em pleno paradoxo. E “Como Nossos Pais” conquistaria ouvintes apaixonados ao decorrer longo das décadas, um pouco pelo poder de sedução da constatação geracional atormentada e sempre válida de que “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais” e muito pela profunda melancolia de arranjo e interpretação somada à extrema coragem de Elis Regina em cantar tais palavras. “Como Nossos Pais” saía dos grotões do Ceará para a condição de uma das mais importantes e gigantescas gravações já feitas em música popular brasileira, por uma artista que cumpriria o mito e se semi-suicidaria de fato cinco anos mais tarde.

E ainda haveria, por cima desse barulho todo, a interpretação do próprio autor.

No disco Alucinação, tais conflitos, na voz acaipirada e fanhosa do compositor, ganhavam contornos, sim, de conflito geracional, mas de um conflito geracional interno. Isso estava brilhantemente exposto na faixa “Sujeito de Sorte”, nos versos “presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte/ porque, apesar de muito moço/ me sinto são e salvo e forte/ e tenho comigo pensado: ‘Deus é brasileiro e anda do meu lado’/ e assim já não posso morrer no ano passado”. É claro que trocando “velho” por “novo” na proposição “apesar de muito velho me sinto são e salvo e forte” Belchior estava provocando o sistema repressivo, que entre torturas, desaparecimentos e assassinatos tornara a juventude forma de risco de vida. Mas dentro disso havia o conflito interno novo/velho, de quem estava no meio de duas gerações, de quem deveria ter acontecido em 1968, mas teve de mendigar espaço por muito mais tempo que outros pouco mais velhos do que ele. De novo, não poder morrer no ano passado era expressão da angústia do autor diante de suas perspectivas temporais. Magoando-se por não se sentir ouvido, já regravava “A Palo Seco”, repetindo a assinatura cruel, quase sádica, de que “eu quero é que esse canto torto feito faca corte a carne de vocês”.

Mas Alucinação, que por muitos prismas poderia ser considerado o primeiro álbum de Belchior, era um beijo e um soco no grande sistema da música popular brasileira. Era um beijo porque Belchior fora convencido, ao menos por ora, a abrandar o furor concretista, hermético e anticomercial do disco anterior e a enfileirar uma rede de melodias tristonhas de altíssimo potencial popular no Brasil ainda triste de 1976 – mais que isso, o fazia dentro de uma combinação em nada revolucionária (nem havia músicos especialmente brilhantes o acompanhando nesse disco), mas em tudo inusitada, de letras quilométricas à Bob Dylan, mais estruturas de blues, de rock e de country rock, mais um evidente fundo de forrós nordestinos que saltava para primeiro plano aqui e ali. Era um soco porque, por trás disso, era a declaração de guerra de Belchior a uma plêiade assustadora de ressentimentos e enfrentamentos atávicos, históricos, nordestinos, poéticos, contemporâneos, musicais, filosóficos. A declaração desses princípios de guerra estava na faixa “Como o Diabo Gosta”: “O que transforma o velho no novo [5]/ bendito fruto do povo será/ e a única forma que pode ser norma/ é nenhuma regra ter/ é nunca fazer nada que o mestre mandar/ sempre desobedecer, nunca reverenciar”.

Estava em campo, portanto, o discípulo cheio de angústia de influência, que fazia dessa angústia desobediência e irreverência. Os primeiros dardos vinham já na primeira canção, “Apenas um Rapaz Latino-Americano”, para sempre uma das que marcariam a tez artística do moço nordestino, carrancudo, machão, de coração duro – o anti-Roberto Carlos, portanto –, que apesar dessas características todas virava agora poeta da canção popular. As primeiras farpas iam para o mestre tropicalista Caetano Veloso, pouco mais velho, mas até então (e para sempre, na verdade) bem mais sortudo que Belchior. Primeiro o narrador lembrava que não lhe saía da cabeça a canção de rádio que dizia que “tudo é divino, tudo é maravilhoso”; logo adiante, contrariava o mestre, afirmando: “Mas sei que nada é divino/ nada, nada é maravilhoso, nada”, não sem antes haver atacado também outra canção de Caetano, “É Proibido Proibir” (1968), achando (com toda razão) que em 1976 “tudo é proibido”. Belchior provocava com plena consciência e noção de perigo, e assim se justificava, diante uma pergunta do jornalista Tárik de Souza, sobre se sua música era um rescaldo do tropicalismo: “Creio que sim. Liquidando as últimas unidades do estoque. Principalmente porque acho que estava precisando. Era uma emergência de consciência, isso. As pessoas estavam na expectativa de reflexão artística sobre esse trabalho, de que do ponto de vista estético alguém se manifestasse. É um dado ousado, sabe? O artista não faz isso impunemente. Tenho toda a tranqüilidade de quem sabe disso. Ninguém pode cantar como convém, sem querer ferir ninguém. Isso está numa das músicas” [6]. Sublinharia algo parecido em 1977, já em fase mais cuidadosa em relação a provocações em excesso: “Eu acho que esse pessoal do tropicalismo teve uma contribuição importantíssima na nossa música. Mas não tenho diante deles uma atitude de idolatria. Acredito que, para a sua época, eles trouxeram mudanças muito importantes. Mas, hoje, eles prosseguem fazendo aquelas coisas na base de magia, de misticismo, como se ainda vivêssemos na década de 60. Eles se recusam a adotar um comportamento racional para interpretar a realidade” [7]. Fazia pois essas provocações aos ídolos tropicalistas, não maiores que as que Elis Regina já portara em “Como Nossos Pais”.

Mais importante em “Apenas um Rapaz Latino-Americano” era a declaração de princípios que norteraria suas convicções e o grosso de sua obra: “Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve/ correta, branca, suave, muito limpa, muito leve/ sons, palavras são navalhas/ eu não posso cantar como convém/ sem querer ferir ninguém/ mas não se preocupe, meu amigo,/ com os horrores que eu lhe digo/ isto é somente uma canção/ a vida realmente é diferente/ quer dizer, ao vivo é muito pior”. Essa ia, na mosca, ao coração de Roberto Carlos e de todos que compreendiam como RC a canção, como gangorra dos romantismos e/ou carrossel multicolorido de parquinho de diversão. A canção era cruel, mas a vida, ah, a vida… era ainda muito pior, segundo as convicções de Belchior.

E, para quem pensasse que aquele narrador estava se colocando em confronto direto com a passividade romântica de Roberto Carlos e com a “neutralidade” “apolítica” de Caetano Veloso, não era só contra eles que Belchior voltava baterias. Sobrava também para Raul Seixas, o inverso conceitual de Roberto e o reverso comportamental de Caetano. “Alucinação”, canção-título, nem era direcionada explicitamente a Raul, mas antes a toda a geração “perdida” que se entregara, desde o início da década de 70, à desideologia do desbunde, do barato total, da entrega desesperançada à cultura das drogas contra qualquer pretensão de ativismo político. Ney Matogrosso recebia estocada que podia ser interpretada como grosseira, talvez mesmo homofóbica: “Um rapaz delicado que canta e requebra (é demais?)” [8]. Vestindo a roupa de careta revolucionário, o narrador afirmava que não estava interessado em nenhuma fantasia, e atacava: “A minha alucinação é suportar o dia-a-dia/ e o meu delírio é experiência com as coisas reais”. Havia, de fato, uma citação remetida a Raul, em “eu não estou interessado em nenhuma teoria/ nem nessas coisas do Oriente, romances astrais” – Gilberto Gil andava às voltas com macrobiótica, refazendas e sabedorias orientais; Raul cantara o bem e o mal de braços atados num “romance astral”, em “O Trem das 7” (1974). Apesar de citado de raspão, o maluco beleza que pregava a formação da “sociedade alternativa” vestiu direitinho a carapuça. Ainda em 1976, compôs e lançou “Eu Também Vou Reclamar”, em resposta principalmente a Belchior: “Apesar dessa voz chata e renitente/ eu não tô aqui pra me queixar/ e nem sou apenas o cantor [9]/ (…) mas agora eu também resolvi dar uma queixadinha/ porque eu sou um rapaz latino-americano/ que também sabe se lamentar”. Belchior declararia, sobre polêmicas dessa natureza: “Aprendi, pela literatura, que polêmica e divergências de ideias são coisas enriquecedoras. A história é feita de tensões e oposições” [10]. Desgraçadamente para ele, o epípeto de “chato” amplificado por Raul Seixas pegaria, e seria ecoado pela imprensa em reportagens e críticas.

Derrotada a tradição da briga e da luta verbal no Brasil, tal duelo musicado parece até frivolidade, mas em 1976 refletia mais um hábito saudável que uma rixa vã e vil entre astros abregalhados. Desse liquidificador, não custa lembrar que tanto Belchior como Raul e Caetano pertenciam à mesma gravadora e estavam sob os auspícios do mesmo André Midani – sentindo-se atingido, Raul tomou a briga para si e respondeu na lata, coisa que Caetano não faria jamais. O debate, se persistisse, ia continuar só entre os representantes populares do anticarlismo. No mais, Belchior tentava explicar na própria “Alucinação” a razão de tanta provocação, e usava para isso uma convicção tão cândida quanto duvidosa: “Amar e mudar as coisas me interessa mais”.

No reverso do pedido de mudança dos outros, havia a manifestação magoada e menos autocrítica de suas próprias penas. “Fotografia 3 x 4” era a canção-símbolo desse lado do autor e, ao que atestavam inúmeras entrevistas dele à imprensa na segunda metade dos anos 70, era pura autobiografia. Entre citações cruzadas a Luiz Gonzaga e Fernando Pessoa, o narrador contava sua sina de retirante que vinha dar nas metrópoles do sul (Rio e São Paulo, onde Belchior viveu alternadamente antes do sucesso), sofria batidas policiais constantes (por causa da aparência “suspeita” de nordestino pobre), tinha de morar no bairro carioca marginal da Lapa, não conseguia se adaptar e se integrar a crises familiares e a questões monetárias, por coração endurecido não sabia ou não podia conservar o amor (“a mulher que eu amei não pôde me seguir, não”), dormia ao relento (“a noite fria me ensinou/ a amar mais o meu dia”)… Tudo desembocava, evidentemente, na revolta angustiada contra Caetano. “Veloso, ‘o sol (não) é tão bonito’ pra quem vem do norte e vai morar na rua”, lamentava, referindo-se gráfica e antropofagicamente ao verso “o sol é tão bonito”, de “Alegria, Alegria” (1967). Traumatizado com as contingências por que passou e pela carência ressentida que o acometia, o narrador buscava se salvar na identificação com o público, com o brasileiro médio que ia ouvi-lo e possuía, provavelmente, história parecida com a sua: “A minha história é talvez igual à sua/ jovem que desceu do norte e que no sul/ viveu na rua e que ficou desnorteado/ como é comum no seu tempo/ e que ficou desapontado/ (…) e que ficou apaixonado e violento/ (…) eu sou como você”. À violência social que recebia na testa, o narrador respondia com violência interna equivalente, à maneira mesma do adolescente Alex da Laranja Mecânica (1971) de Stanley Kubrick (citada literalmente, aliás, na faixa “Alucinação”). O conflito essencial, por cima de outros muitos e fortes, era o da adolescência vivida em tempo inadequado, do sentimento de inadequação ao tempo (à idade) e à geografia (o sentimento de auto-exílio acometendo o retirante nordestino). A tristeza era a prova dos nove de Belchior, como era também a de Roberto Carlos. No primeiro, a tristeza era expelida com gases fétidos de vômito. No segundo, era ruminada e transtornada em medo calado, em pânico reprimido. “Eu sou como você” era constatação de aprendiz dirigida ao mestre Roberto Carlos, mais que a qualquer outro brasileiro.

 

* * *

 

Coração Selvagem, 1977, de BelchiorE então Belchior seguiu André Midani e foi participar da criação da Warner do Brasil – possivelmente como carro-chefe da nova gravadora, dadas as vendagens expressivas (em torno de 100 mil exemplares, dizia-se) de Alucinação. Para turbinar tal possibilidade, foi agregada à imagem do macho latino-americano bigodudo um novo rótulo, de “sex symbol”. A capa do disco Coração Selvagem (1977) expunha um Belchior de torso nu, banhado de mortiça luz lilás. Os anos seguintes Belchior passou desmentindo à imprensa a intenção de ser símbolo sexual, mas as mulheres passaram a desafogar comportamento de histeria sexual em seus shows, e nunca ficou totalmente esclarecido se o latin lover nascera do próprio Belchior, de estratégia da Warner ou de espontaneidade.

Belchior parecia enquadrado nesse novo disco, Coração Selvagem (1977). Encolhia-se a metralhadora giratória de citações, quanto mais se fossem no estilo provocativo do disco anterior – essas praticamente não haviam, ao menos não da forma literal e audaz de antes. Restava para a literalidade (mas também nem tanto assim) a faixa-título, que abria o disco citando Caetano, Gal, Roberto e Erasmo. O narrador repetia “meu bem, meu bem, meu bem” como em “Sua Estupidez” (lançada em 1969 por Roberto e regravada em 1971 por Gal Fatal), para afinal fazer a ponte com os estrangeirismos da jovem guarda e de “Baby”, o hino tropicalista cantado em 1968 por Gal e Caetano: “Meu bem, meu bem, meu bem/ que outros cantores chamam baby”. Nem era propriamente crítico, a não ser no trecho duro que dizia que “talvez eu morra jovem/ alguma curva do caminho/ algum punhal de amor traído/ completará o meu destino”. Desconfortável diante da noção de traição que seus princípios de discípulo rebelde aos ídolos lhe atraía, o narrador previa morte breve (morte artística, será?) e encetava mais uma provocação: citava de passagem “As Curvas da Estrada de Santos” de Roberto e Erasmo, mas colocava como aposto à citação a idéia do “amor traído”, um tema tabu para os jovens senhores católicos da jovem guarda, que até admitiam ser trocados por outro em suas canções, mas jamais se colocavam na posição de namorado traído (afinal, a traição era e é e sempre será um pecado, de acordo com o ideário romântico-cristão).

Em sinal de enquadramento também musical, instrumentistas de linhagem foram convocados para Coração Selvagem, e José Roberto Bertrami (o indefectível tecladista do Azymuth, hegemônico em discos dos anos 70) foi incumbido dos arranjos de base, que tomavam um inesperado tom movido por órgãos e coros femininos. Soava algo new age, uma tentativa não muito bem sucedida de encontrar o “novo” som. O que não mudava era a tônica textual da busca desesperada pelo novo – reivindicada ainda naquela tecla do conflito interno de meia geração que acometia Belchior, de novo compositor solitário de todas as canções do álbum. A obsessão pelo novo aparecia em “Caso Comum de Trânsito”, agora com enfoque autocrítico, desencantado, impotente: “Você fica perdendo o sono, pretendendo ser o dono das palavras, ser a voz do que é novo/ e a vida, sempre nova, acontecendo de surpresa, caindo como pedra sobre o povo”. Reaparecia na retomada de uma música perdida no álbum de estréia, “Todo Sujo de Batom”, em que agora se podia perceber bem o conflito geracional do narrador. “Quero uma balada nova, falando de brotos, de coisas assim,/ de money, de banho de lua, de ti e de mim,/ um cara tão sentimental”, cantava o pregador do novo, ao mesmo tempo em que citava velharias como os brotos do iê-iê-iê, o “Money” dos Beatles, o “Banho de Lua” de Celly Campello, a retórica sentimental à Altemar Dutra e, claro, Roberto Carlos. Aparecia, sobretudo, na obscura canção-manifesto de Coração Selvagem, “Clamor no Deserto”.

Essa última era onde o linguajar cru e cruel de antes reaparecia de forma mais nítida, desde o início: “Eh, meus amigos/ um novo momento precisa chegar/ sei que é difícil começar tudo de novo/ mas eu quero tentar”. Trovador esganiçado de deficiente dicção, partia então para a constatação precoce de que sua rota não seria plana: “A minha garota não me compreende/ e diz que desse jeito apresso o meu fim”. “Minha garota”, no contexto, podia ser facilmente substituída por “críticas”, “pressões”, “perplexidade” de quem não estava acostumado com nem pretendia ficar ouvindo as navalhadas na carne de Belchior. Se ele era a voz do não, “não” seria o que mais provavelmente iria ouvir de volta, e “Clamor no Deserto” demonstrava que esse contragolpe já fazia efeito no autor. Pois seguia a canção, abertamente incomodada com as más reações estimuladas por seu cancioneiro mórbido: “Quem me conhece me pede eu eu seja mais alegre/ mas é que nada acontece que alegre meu coração”. “Clamor no Deserto”, entretanto, decretava que não haveria capitulação, pelo menos por ora, e ainda arriscava uma nota sarcástica de espírito enfant terrible contra o que se acusava haver em suas canções: “Ano passado, apesar da dor e do silêncio,/ eu cantei como se fosse morrer de alegria/ hoje eu lhe falo em futuro e você tira o revólver/ puxa o talão de cheque e me dá um bom-dia”. A conclusão era a mais pessimista possível, citando o “grande irmão” pré-apocalíptico do romance 1984, de George Orwell: “Mas só falta um tempo para 1, 9, 8, 4/ agora eu estou em paz: o que eu temia chegou”.

O profundo desencanto de “Clamor no Deserto” se consumava em isolamento – o autor julgava estar jogando pérolas aos porcos, ao que parece – e se completava em outros momentos do disco. Pululavam canções sobre medo (“Pequeno Mapa do Tempo”, composta segundo ele em 1968 [11]), melancolia (sua gravação para “Paralelas”, já analisada no capítulo anterior), dor e infelicidade. Nesses dois últimos quesitos, era imbatível “Galos, Noites e Quintais” (lançada no ano anterior pelo sambista paulista Jair Rodrigues), de um narrador que lamentava profunda e nostalgicamente seu momento presente: “Quando eu não tinha o olhar lacrimoso/ que hoje eu trago e tenho (…)/ eu era alegre como um rio,/ um bicho, um bando de pardais”. O desenlace da canção optava pela lamúria (“mas veio o tempo negro e a força fez/ comigo o mal que a força sempre faz”), mas também por corajosa confissão de infelicidade (“não sou feliz, mas não sou mudo/ hoje eu canto muito mais”). Versos de tal canção teriam fundamental importância no cenário político brasileiro de então, mas é que em tudo que Belchior cantava saltava ao primeiro plano de sua voz inadaptada e indomada uma preponderância pessoal, existencial, um mal do século fincado no século errado.

Todos os Sentidos, 1978, BelchiorO composto de estratégias, desencantos e poses de sex symbol funcionou: em apenas três meses, Coração Selvagem vendeu 80 mil cópias. E credenciou produção rica e procura de modernização para o disco seguinte pela Warner, Todos os Sentidos, de um Belchior em fundo negro, camisa aberta, mão no rosto, olhar fatal. Já era 1978, e estava mais claro para onde tendia a se direcionar aquela ideia sexista que envolvia a embalagem do artista cearense. Desde o disco anterior para cá, chegara ao Brasil o boom norte-americano da discothèque, que ganhava contornos de massa pelo potencial popular da novela global Dancin’ Days, de Gilberto Braga. A música-tema da novela, de mesmo nome, era interpretada pelo grupo feminino de disco music Frenéticas, que lançara seu primeiro álbum no ano anterior, pela mesma Warner de Belchior. Havia no ar uma nova proposta hedonista, a tal política do corpo, o vale-tudo sexual movido não mais a maconha ou LSD, mas agora, principalmente, a cocaína (essa veia aparecia exposta na canção de marginália “Ter ou Não Ter”, uma epopeia deslindada em sexo por dinheiro, drogas e assassinato que inspiraria, anos mais tarde, sua filhota “Faroeste Caboclo”, da Legião Urbana de Renato Russo). Todos os Sentidos revelava que a estratégia que movia Belchior era a mesma da linha mestra da Warner, de injetar no Brasil balanço funk, música para dançar, energia sexual anfetaminada e energizada pela cocaína.

Convocou-se para a maioria dos arranjos do disco o futuro mago dos sintetizadores e dos arranjos primeiro funkeados, em seguida de pique discothèque, mais adiante new wave: Lincoln Olivetti, que já andava envolvido com o artista que mais se adequava a sua proposta, Tim Maia. As Frenéticas foram instadas a participar de forma ostensiva numa faixa – possivelmente contrariado, Belchior fê-las pronunciar letra francamente antipop, quase toda em latim (enquanto o próprio autor mencionava em inglês referências pós-modernizadas a Beatles, Bob Dylan e Cole Porter). Era uma garatuja musical, e Belchior parecia mesmo não desejar outra coisa para o esquisitíssimo disco-funk “Corpos Terrestres”. Letras complicadas em português mesmo acompanhavam outros exemplares discothèque do álbum, como o desastrado coro disco-funk de uma nova versão para a antiga “Na Hora do Almoço” (a terceira em sete anos) ou “Como se Fosse Pecado”. Sinal a mais de um Belchior iracundo, nessa última, quase toda conduzida por músicos norte-americanos, o efeito discothèque tinha de conviver com versos concretistas (“batuco um canto concreto pra balançar o coreto”) e diversas citações textuais ao cancioneiro brasileiro de Geraldo Pereira, Herivelto Martins e Marino Pinto, Jorge Ben, Ednardo – mas também aos Beatles.

Se até aqui tudo parecia a vontade meio desastrada de fazer de Belchior um John Travolta tropical, havia também a exposição frontal da política do corpo. Começava por “Sensual”, em que Belchior soava suave como nunca anteriormente, numa letra que parecia querer conquistar o público feminino suscetível à imagem do amante latino que ele já forjara. E encontrava ponto principal em “Bel-Prazer”, mais um inventário belchioriano da canção brasileira, com citações a “Irene” (de Caetano), “Soy Loco por Ti, América” (de Gil e Capinan), “Luar do Sertão” (de Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco) e outras. O pressuposto estava em “achar (ou inventar) um lugar/ tão humano como o corpo/ onde pensar e gozar seja tão livre e legal/ como as razões de Estado”, e o último bloco parecia querer fazer um inventário do Brasil a partir do tropicalismo: “Entrar ou sair da escola/ mulher/homem/homem/mulher/ como luar no sertão/ como lua artificial/ como roupas comuns/ como bandeiras agitadas/ festival estranho festa/ feriado nacional”. Eis aí o dilema: o novo que tanto buscava o quase-novo Belchior se materializara em disco music, política do corpo e hedonismo cocainado. O artista tentava aderir aos novos preceitos, mas tão intoxicado como sempre pelos hálitos tropicalistas. Homem de meia-geração, primeiro ficara correndo para alcançar a geração imediatamente passada, sabendo que nunca teria sucesso nesse intento. Agora, dava de cara com a nova geração, e ela era muito bem representada pela futilidade adrenalinada das Frenéticas, pela ausência quase completa de tutano dentro das canções. Belchior não pertencia a nenhuma das duas pontas, e o que sempre temera estava acontecendo: era novo demais para os velhos, velho demais para os novos. Era o carneiro do sacrifício da meia-geração, como seriam também muitos dos seus, como Fagner, Zé Ramalho, Ednardo e Geraldo Azevedo. A história seria inclemente para com todos eles.

Em seu caso, a perdição à espreita era a guinada tão forte a que era forçado, de pular de uma poética bravia e muito planejada ao vazio conceitual da discothèque. A impossibilidade desse salto chamava-se Todos os Sentidos, que então escondia envergonhadamente os valores bem belchiorianos que possuía. Tal era a canção “Divina Comédia Humana”, uma reflexão intimista (e espanholada no arranjo, e presenteada com citação a poema do parnasiano Olavo Bilac) sobre a incapacidade de amar de narrador que choramingava, algo incrédulo, entre confissões de lençol: “Aí um analista amigo meu/ disse que desse jeito não vou ser feliz direito/ porque o amor é uma coisa mais profunda/ que um encontro casual”. Tal era, principalmente, a perigosa “Brincando com a Vida”, em que se entregava o narrador: “Vida, eu não aceito, não, a tua paz/ porque meu coração é delinquente juvenil/ suicida, sensível demais/ vida, minha adolescente companheira,/ a vertigem, o abismo me atrai:/ é esta a minha brincadeira/ eu estou sempre em perigo/ o dia D, a hora H, o bang, o click do gatilho”. Da ponta do ser de sombra que se refestela pelos encontros sexuais causais à do suicida que precisa da sensação do perigo para viver, era o anti-romântico em desespero quem estava em ação. Ou talvez fosse o romântico propriamente dito, mas em estágio de dizimada auto-estima. Era, de todo modo contra-exemplo do romantismo de Roberto Carlos, embora talvez fossem muito parecidos afinal.

A crítica detestou Todos os Sentidos.

Era uma Vez um Homem e Seu Tempo, 1979, BelchiorMas o que importava era que o próprio Belchior não se sentia bem dentro da nova-velha roupa colorida da discothèque, e se esforçou por despi-la momentos depois. A alternativa, após tal decisão, era mesmo ficar nu, e de sua nudez nascia mais um disco, ‘Era uma Vez um Homem e o Seu Tempo’ (1979), o derradeiro trabalho da única fase de franco sucesso de sua história. Expulsando para longe qualquer resquício de disco music, aqui Belchior enquadrou mais o arranjador Robson Jorge (parceiro constante de Lincoln Olivetti) do que foi enquadrado por ele. Saiu de banda a ideia artificial de fazer de Belchior um hedonista homem de danças, e voltou à toda a velha e opressiva melancolia. Não se perdeu o sucesso por causa disso, pois havia o romantismo agalopado de “Medo de Avião” (“foi por medo de avião/ que eu segurei pela primeira vez a tua mão”). E não, não estava à vista um novo romântico à moda de Roberto Carlos: a própria “Medo de Avião” tinha uma segunda versão no disco, mostrando o outro lado da moeda. Se a primeira iniciava o álbum em ambiente idílico, a segunda exibia a face sexual da moeda romântica – e eis a política do corpo de volta – com referências a uma relação sexual a bordo e aos “grandes lábios” da musa. Nessa segunda versão, aparecia inesperado crédito de parceria a Gilberto Gil, amado inimigo tropicalista que se utilizava de habitual generosidade para se unir ao discípulo iracundo por breves instantes (e, não custa lembrar, Gil era o maior nome MPB da fase de implantação da Warner de André Midani).

Também havia em “Medo de Avião” a habitual citação aos Beatles, na ligação da mão segurada nos altos ares com “I wanna hold your hand”, e também em trecho musical de “She Loves You” (1963). Nesse disco, a obsessão de Belchior pelos Beatles era levada ao ponto máximo: “Brasileiramente linda” [12] citava “Here Comes the Sun” (1969) e “Comentário a Respeito de John” não só se remetia diretamente a Lennon (e a Yoko Ono, transformada em “oh, no”) como girava em torno do mote da canção beatle “Happiness Is a Warm Gun” (1968). Belchior se desprendera de vez da frivolidade das Frenéticas, mas em compensação cedia amplamente ao puro saudosismo de quem parecia não aceitar o desmembramento dos Beatles, nove anos antes.

A metralhadora citatória de glórias passadas também vinha encorpada, fosse nas menções a poetas brasileiros de “Retórica Sentimental” (em que sobrava também para os “tristes trópicos” do antropólogo Claude Lévi-Strauss), fosse nas referências à linhagem de utopia latino-americana de Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Gonzaguinha e ele próprio, em “Voz da América”. O melhor desses momentos no álbum se dava nas duas parcerias de Belchior com o sessentista Toquinho, “Pequeno Perfil de um Cidadão Comum” e “Meu Cordial Brasileiro”. A primeira era uma bela e tristíssima canção banal sobre um rapaz que “era feito aquela gente honesta, boa e comovida/ que caminha para a morte pensando em vencer na vida”. Evidentemente o rapaz acabava carregado para a morte precoce, “feito um pacote”, consumando a referência cruzada à crônica tropicalista “Ele Falava Nisso Todo Dia” (Gilberto Gil, 1968) e à crônica antitropicalista “Construção” (Chico Buarque, 1971). A segunda citava e invertia citações cruzadas de MPB, do Roberto Carlos de “É Proibido Fumar” (“menina, ainda tenho um cigarro, mas eu posso lhe dar”), de 1964, e de “O Show Já Terminou” (“menina, o show já começou, é bom não se atrasar”), do Jorge Ben de “Porque é proibido pisar na grama” (“a grama está sempre verde, mas eu quero pisar”), de 1974, do Luiz Gonzaga de sempre (“asa branca, assum preto, sertão não virou mar”). De novo ao Roberto de “É Proibido Fumar” e agora também ao Caetano Veloso de “É Proibido Proibir”, concluía: “Menina, é proibida a entrada, mas eu quero falar/ com/contra quem me dá duro/ com o dedo na cara/ me mandando calar/ que o pecado nativo é simplesmente estar vivo/ é querer respirar/ ar”. Antes revoltado com seus antecessores por sua mera existência, o narrador agora somava à revolta a convicção de que aquela nata de heróis endinheirados proibia a passagem de quem vinha atrás, patrulhava, reprimia, sabotava, sufocava [13]. Em parte, estava transferindo ao próximo suas próprias responsabilidades; em parte, isso acontecia realmente, e era ele quem não conseguia se defender a contento. Sua defesa era o ataque, e o ataque era o mais feio dos pecados no Brasil censorial na beirada da anistia.

Atacava frontalmente por intermédio de “Conheço o Meu Lugar”, canção em que começava a denunciar com mais vigor e objetividade a humilhação e a ofensa de que se julgava vítima como nordestino e que, sabia, eram moeda corrente de qualquer nordestino ou outro marginalizado qualquer na vida animal das megalópoles do sul. A pancada: “O que é que eu posso fazer, um simples cantor das coisas do porão?/ Deus fez os cães da rua pra morder vocês/ que sob a luz da lua os tratam como gente – é claro –, aos pontapés”. A vingança: “Ninguém é gente!/ Nordeste é uma ficção!/ Nordeste nunca houve!/ Não, eu não sou do lugar dos esquecidos!/ Não sou da nação dos condenados!/ Não sou do sertão dos ofendidos!/ Você sabe bem:/ conheço o meu lugar”. Obviamente não se tratava de negar seu Nordeste natal, mas sim o inverso, reivindicar a integridade e a igualdade aos oprimidos, de que ele se julgava representante plantado no solo árido da música popular. Poucos ouviriam seu grito, que no Brasil era preciso gritar baixinho (como fazia Roberto Carlos).

De meio termo entre o ressentimento trazido de fora para dentro e a mágoa criada de dentro para fora, havia “Tudo Outra Vez”, uma reflexão cruenta sobre os anos passados pelo retirante nordestino na metrópole sulista. Clamando ainda por “viver coisas novas”, o narrador mais uma vez fazia o inverso do que pedia e apelava ao passado, considerando-se “sentado à beira do caminho pra pedir carona”. Havia alguma novidade ali, de fato: a imagem que mais lhe convinha naquele momento era a daquele Erasmo Carlos de 1969, perdido entre a perplexidade pelo advento da tropicália e a incredulidade pelo abandono do guia Roberto Carlos à jovem guarda. Após discos de receptividade popular e intenso bombardeio crítico, o narrador de Belchior sentia-se sozinho, em pleno abandono, à beira do caminho. Atirara bombas e críticas a esmo, sob a forte crença no bem que elas produziriam; paralisava-se agora diante das baterias antiaéreas que vira se voltarem contra sua própria artilharia. Sentia-se impotente na guerra que ele mesmo quisera (e devera) provocar. Sucumbia pela falta de apoio interno, ao mesmo tempo em que afirmava só contar consigo próprio (“saia do meu caminho/ eu prefiro andar sozinho”, chorava no lindamente desesperado blues-country-folk “Comentário a Respeito de John”). Dizia o que pensava, pensava o que dizia e sentia o contrário do que dizia sentir. Era um descompasso em forma de bigodão e sorriso plácido. De novo contumaz, estava assinando nova sentença de exílio e testamento, desta vez talvez duradoura como a própria vida.

 

* * *

 

Objeto Direto, 1980, BelchiorA incompreensão interna e, especialmente, externa decretou uma sina descendente daí por diante. O “cantor das coisas do porão” seria cada vez mais aquilo mesmo que propusera naquele verso de “Conheço o Meu Lugar”. O primeiro passo para isso foi o depressivo Objeto Direto (1980), seu quarto disco para a Warner (ou melhor, o primeiro para o selo Elektra, do mesmo conglomerado WEA). Na capa, Belchior acendia um cachimbo (qual o romântico Roberto Carlos de 1975), em foto redonda em preto-e-branco sobre capa de branco profundo (qual o Caetano de Muito – Dentro da Estrela Azulada, de 1978). Nos sons, nada que pudesse se transformar em sucesso de rádio, nem sua extemporânea versão de co-autor para a antiga “Mucuripe” (histórica parceria fundadora Fagner-Belchior que Elis apresentou em 1972 e Roberto regravou em 1975), cantada com premeditada má-vontade. Secundado por uma equipe neutra de músicos, Objeto Direto era totalmente anticomercial, era Belchior feito objeto indireto. Mas, combalido pela relação instável com o sucesso, com sua classe e com a mídia, Belchior não soube naquele momento conciliar anticomercialismo e consistência poética e musical. Parecia girar em torno de temas vagos, sem saber ao certo o que queria dizer naquela difícil aurora dos anos yuppies da década de 80.

Viajava entre a política de corpo de objeto sexual e um forte conflito de identidade na canção-título, o libelo antinuclear em “Peças e Sinais” e “Cuidar do Homem” (influenciadas pelo pacifismo de Roberto Carlos, mas por vias que passavam antes por Zé Ramalho), os malabarismos concretistas inficazes, “sem metas” (como dizia a própria canção), na bela “Ypê”, a trip longuíssima e muito arrastada em companhia dos conterrâneos Fagner e Fausto Nilo da fúnebre “Aguapé” [14], o antigo inconformismo pela sensação de opressão em “Seixo Rolado” (que afirmava, grave, que “ser tão humilhado é sinal de que o diabo é que amassa o meu pão”) e, em várias canções, nova saraivada de citação aos poetas prediletos, Carlos Drummond de Andrade, Castro Alves e Oswald de Andrade à frente. À liquidificação da linhagem musical brasileira era reservada a “Depois das Seis”, com menções cruzadas a Noel Rosa, Lamartine Babo, Caetano Veloso, Chico Buarque. A questão nuclear do autor era posta em quatro palavras, “a culpa é tua”, maneira atormentada e enviesada de dizer “a culpa (não) é minha”. Belchior estava nessa forquilha. Ele e toda a geração “Nordeste agreste” que florescera devagarinho ao decorrer dos anos 70 estavam numa encruzilhada. Ele, Ednardo, Fagner e Zé Ramalho haviam chegado agressivamente, cônscios de sua estatura e de sua missão. Ao contrário da geração dourada de 1968, no entanto, encontraram a porta totalmente trancada, e não prestes a se trancar como daquela vez. Não é que não havia lugar à mesa do almoço da grande família. Não havia mais almoço, não havia sequer família. E Belchior recrudescia à condição de órfão, de filho abandonado por pais inexistentes. E perdia o prumo.

Paraíso, 1982, BelchiorEm busca de redenção, batizou o disco seguinte, dois anos depois, de Paraíso, com subtítulo frontalmente dedicado a contradizer Roberto Carlos: …E Que Tudo o Mais Vá para o Céu. Iniciava-o com “…E Que Tudo o Mais Vá para o Céu” tentando transmitir alegria, entusiasmo, vibração – tentando, pois, espantar a depressão de Objeto Direto. Para isso, utilizava-se de músicos do grupo baiano A Cor do Som (que era então um dos quindins da gravadora WEA), como acontecia de resto em todo o disco. Tal opção conferia a Paraíso uma feição de pop, reggae e new wave abrasileirado, com namoros ao trio elétrico, ao new age e ao kitsch em vários momentos. O moto de exorcismo aparecia também textualmente em “…E Que Tudo o Mais Vá para o Céu”, composta em parceria com o ex-inimigo tropicalista Jorge Mautner: “Vai embora, poeta maldito!/ o teu tempo maldito também já terminou!”. Para exorcizar a maldição é que chamava ao avesso por Roberto Carlos, sacralizando o antigo clamor ao demônio do artista mais popular do Brasil: “E à noite eu entro num cinemascope/ technicolor/panavision/ daqueles de caubói/ de que vale a minha boa vida de playboy?/ e eu compro esse ópio barato/ por duas gâmbias, pouco mais, mas como dói/ se eu entro num estádio e a solidão me rói/ e eu quero é mandar para o alto/ o que eles pensam em mandar para o beleléu/ …e que tudo o mais vá para o céu”. O desejo de redenção era, como de hábito em Belchior, forrado de contradição. Se para aquele narrador cinema era ópio barato, ele queria dizer também que o pop romântico de Roberto era barato, e a agressão ao ídolo era mais explícita na citação alterada ao verso “se entro no meu carro e a solidão me dói” – o “dói” era trocado por “rói”, bem mais cruel, e o “carro” virava “estádio”, em relação ao estrelato de arena de Roberto Carlos, que alguém magoado como Belchior considerava algo de extrema solidão. Talvez fosse mesmo, mas acusar isso não encolhia a imensa solidão do próprio narrador sequioso por redenção.

O discurso era confuso, e ficava ainda mais após aderidas referências à “asa da graúna” do condoreiro Castro Alves e ao plantão underground versão anos 80, que florescera na cidade de São Paulo a partir da virada da década. Belchior já citara o não-canto áspero de Arrigo Barnabé no disco anterior (na faixa “Cuidar do Homem”), e agora o “o que eles pensam em mandar para o beleléu” remetia a Itamar Assumpção, que eclodira para a música experimental e intricada em 1980 com o personagem-alter ego Beleléu. Ainda pesquisando esse universo emergente, Belchior gravava duas músicas do repertório da Banda Performática, do artista plástico Aguilar. Uma delas, “Estranheleza”, era composição de Arnaldo Antunes, então pertencente à trupe Aguilar e Banda Performática (cujo único LP, de 1982, foi produzido por Belchior), futuro vocalista dos Titãs e futuro músico “popcreto” . A outra, o reggae mântrico “Ma”, era de Arnaldo com Aguilar e Nuno Ramos, também artista plástico. De resto, a pena poética de Belchior parecia intimidada em Paraíso, pois ele se dedicava a interpretar vários outros compositores, como Guilherme Arantes (num desastrado reggae tropical, “A Cor do Cacau”, lançado pelo autor em 1979), Sérgio Kaffa e Cézar de Mercês (ex-membros d’O Terço) e Ednardo Nunes (que era cearense, mas não era o Ednardo de “Pavão Mysteriozo”).

Quando falava de voz própria, só na sarcástica “Monólogo das Grandezas do Brasil” manteve intactas suas características melancólicas de sempre, colocando-se explicitamente na carne de um migrante nordestino pobre e oprimido para falar, de novo, de gente “humilhada e ofendida pelas grandezas do Brasil”. A conclusão continha puros sangue, suor, lágrimas e exaustão: “Como uma metrópole, o meu coração não pode parar/ mas também não pode sangrar eternamente”. De resto, Belchior tentava com constrangimento exalar um novo humor, escaldado que estava provavelmente das acusações de “chato”, “reclamão” etc. Disso surgiam choques culturais como o de “Do Mar, do Céu, do Campo”, em que referências às vanguardas de Marcel Duchamp e Alfred Jarry se diluíam em expressionistas sonoridades latinas. E surgia também “Paraíso”, que se pretendia um chamado à dança: “Dá-lhe, fale que só vale ser, dance comigo/ guarde o seu corpo na alegria e no (bom) HUMOR/ palavra tão amiga minha e, de si mesma, tão vizinha da palavra AMOR” [15]. De novo Belchior se fazia cavalo da WEA e daquela noção disseminada de que dançar era o que restava, fosse pelos passos passados da discothèque ou pela festança de reggaes, lambadas e carnavais d’A Cor do Som. Belchior não parecera vestido em sua própria roupa na depressão de Objeto Direto, mas menos ainda parecia agora, na alegria fantasiosa de Paraíso, que não era de sua natureza exteriorizar. Nada deu muito certo, e lá se foi ele embora da WEA de André Midani.

 

* * *

 

Cenas do Próximo Capítulo, 1984, BelchiorPouco depois de amaldiçoar os poetas malditos e de pedir bênção sarcástica a Roberto Carlos, Belchior foi seguir a sina dos malditos: ficou sem gravadora e fundou seu próprio selo, Paraíso Discos, pelo qual lançou em 1984 o álbum Cenas do Próximo Capítulo, auxiliado de pouco pela distribuição da multinacional EMI-Odeon. No ano do Big Brother de George Orwell, era de se esperar que o título e a capa expondo um Belchior descabelado visto por uma tela de TV remetessem a uma iminente crítica ao másculo poder e aos abusos da grande mídia brasileira, mas não era isso que se ouvia em Cenas do Próximo Capítulo, um disco todo impregnado de sintetizadores bem oitentistas – Belchior tentava, como de resto a maioria dos artistas da era dos festivais, se adaptar à nova sonoridade do pop brsileiro, roqueira diluída e indecisa entre a new wave e a new age. Mas o chiste com telenovela se reduzia à graça de “Rock-Romance de um Robô Goliardo” encerrar o lado A do vinil como num programa de auditório, com longas narrações de um animador eletrônico entremeando a canção propriamente dita, para, em seguida, “Canção de Gesta de um Trovador Eletrônico” abrir o lado B voltando à mesma melodia e à mesma letra, agora em formato de rock convencional.

No mais, o que o disco significava, ainda que com canções predominantemente inéditas, era o primeiro grande inventário saudosista da carreira de Belchior. Veja só. A faixa de início encetava rápido caráter de manifesto: era uma regravação de “Ouro de Tolo” (1973), que selava a quebra final da desavença antiga com Raul Seixas. Tal desavença tinha muito menos relevância que a semelhança de discurso entre o que dizia a balada cafona do roqueiro baiano e o que sempre andou dizendo o poeta marginal cearense. O mau humor era o mesmo, o desencanto era o mesmo, até a experiência de fome nas ruas antes da fama fora a mesma. E Belchior afinal admitia de modo mais explícito mais esse seu mestre. Daí em diante, começava a citação desenfreada. “Ploft” retomava a utopia latino-americana, mencionando literalmente o livro As Veias Abertas da América Latina (1971), do historiador uruguaio Eduardo Galeano. Essa e as posteriores “Brotinho de Bambu” e “Rock-Romance de um Robô Goliardo” rabiscavam insistentes exercícios de poesia visual e concretista já esterilizada pelo excesso de uso e por certo vazio conceitual que ela agora ocultava. O tal “Rock-Romance”, junto com “Canção de Gesta de um Trovador Eletrônico”, fazia uso extensivo de recursos kitsch da eletrônica dos 80 para tecer declaração apaixonada e plenamente saudosista aos rock’n’roll dos 50 e 60. Apesar de citações cruzadas de tom contemporâneo (como “vamos dar um balanço cibernético nas horas”, que falava ao mesmo tempo do pioneiro “Rock Around the Clock” (1956) de Bill Haley e do novinho “Tudo Pode Mudar”, do grupo Metrô), o lance era memorabilia pura, com menções nominais a Chuck Berry, Bill Haley and His Comets e aos mártires Jim Morrison, Jimi Hendrix, John Lennon e Janis Joplin. O discurso roqueiro servia, principalmente, para Belchior voltar a suas obsessões cativas, vomitadas na enumeração de uma longa lista de marginalizados sociais e na interessantíssima narrativa do choque entre um jovem futuro roqueiro e sua mãe nordestina: “Ia pondo meu pé na rua quando a minha velha saltou de lá, muito cheia de si, me chamando playboy, rebelde, transviado, como se fosse dona do mundo. E foi logo dizendo: ‘Pra você ver a vida como é! A gente cria um bicho desses, educa, dá do bom e do melhor, casa e comida, roupa lavada, amor, carinho, mesada, e esse aventureiro termina deixando a escola, fugindo de casa, maldizendo a família, querendo ser cantor de roque!’”. Retomando frase-ícone do velho ídolo popular Waldick Soriano (“eu não sou cachorro, não/ pra viver tão humilhado”), reatava sua obra ao imaginário de Raul Seixas, querendo levar discurso explosivo às mais populares das plateias.

Lado B, continuava a saga revisionista. “O Negócio É o Seguinte” combinava menções a forró, sertão e o verso “não sou nenhum pai joão”, de “Sem Compromisso” (a canção de 1944 é de Nelson Trigueiro e Geraldo Pereira, mas sua constância no repertório do bossa-novista João Gilberto dava sentido duplo à citação de Belchior). “Beijo Molhado”, subtitulada “Tele-Canção de Novela Brasileira”, rememorava atabalhoadamente o “beijo molhado, escandalizado” de “Da Cor do Pecado” (1939, de Bororó, mas também frequente na voz de João Gilberto), as divas hollywoodianas de Belchior, “Only You” (1955), iê-iê-iê, discothèque, termos de canções antigas do próprio Belchior (“suja de batom”, “tomar um sorvete”), tudo junto e confuso. A canção mais triste do LP, “Onde Jaz Meu Coração”, usava banjo country e paródia do “Mr. Tambourine Man” (1965) de Bob Dylan para se remeter ao adorado Nordeste, na retórica bem conhecida de reivindicação da grandeza da região que ele chamava de “reino do abandono”, “um país de esquecidos, humilhados, ofendidos e sem direito ao porvir”. Essa canção continha, sem talvez nem ter o propósito, o momento de maior bom humor de toda a obra de Belchior, nos autocríticos, lúcidos e até comoventes versos “ah, minha voz, rara taquara rachada,/ vem, soul-blues, do pé da estrada/ e canta o que à vida convém/ vem, direitinha, da garganta desbocada/ mastigando in-nham, in-nham/ cheinha de nhenhenhém”. Estrofe cândida, lembrava, além do textual, que Belchior já não era mais assim tão desbocado. O cansaço criativo começava a assomar à fronte. E, para finalizar, Belchior voltava ao passado nordestino ainda mais que em Raul Seixas, dando versão tecnopop ao “Forró no Escuro” (1958) do patriarca Luiz Gonzaga. Estava aberta a temporada de saudosismo.

Um Show - 10 Anos de Sucesso, 1986, BelchiorEra ela, por exemplo, que permitia a contratação de Belchior pela gravadora Continental, para lançamento do periclitante Um Show – 10 Anos de Sucesso (1986), com versões supostamente ao vivo (mas sem aplausos do público e com toda cara de gravação de estúdio) e new wave dos sucessos fundadores e nenhuma faixa inédita. Esse em breve se tornaria um eterno retorno para Belchior, mas ainda não. Em 1987, voltou à velha Philips (agora rebatizada PolyGram, pela fusão dos selos Polydor e Phonogram) que vira seu sucesso nascer e lançou mais um álbum de inéditas, Melodrama.

Melodrama, 1987, BelchiorParecia a volta do artista a padrões de produção independentes de modismos new wave, como se ouvia na orquestra de dramalhão de “De Primeira Grandeza”, que abria o disco em pique carlista de elogio à paixão (Chiquinho de Moraes, velho colaborador de Roberto Carlos, era o arranjador dessa e de outras faixas), mas em pique anticarlista de discurso confuso de confusão dos sexos (presente também em outras canções do disco, como “Lua Zen”, dele com Gracco). Mas logo a impressão era relativizada, fosse no arranjo sintetizado de elevador para “Todo Sujo de Batom” (que Belchior gravava pela terceira vez), fosse no tratamento América Central, carnavalesco, pré-axé music, de “Bucaneira”.

O momento mais ferino do Melodrama, e também o de melhor resolução musical (inclusive pelo tom certeiro e incomum de delicadeza que Belchior dava à interpretação) era o de “Dandy”, um refluxo de sua velha crítica ao comportamento artístico deslumbrado, ao apego apenas mercadológico de grandes ídolos a discursos revolucionários, esquerdistas. Dizia ele: “Mamãe, quando eu crescer eu quero ser artista/ sucesso, grana e fama são o meu tesão/ entre os bárbaros da feira ser um mero conformista/ nem um supermercado satisfaz meu coração/ mamãe, quando eu crescer eu quero ser rebelde/ se conseguir licença do meu broto e do patrão/ um Gandhi dândi, um grande milionário socialista/ de carrão chego mais rápido à revolução”. Parecia uma crítica feita à distância, por quem se julgava fora daquela redoma, e a canção “Tocando por Música” (parceria com Jorge Mello) o confirmava fazendo o contraponto: “A minha alma esteve à venda/ como as outras do lugar/ só que ninguém me comprou/ pois só eu quis me pagar”. A confusão aumentava em “Dandy” pelos versos seguintes: “Ah, quanto rock dando toque, tanto blues/ e eu, de óculos escuros, vendo a vida e o mundo azul”. Era um emaranhado de referências cruzadas, ao “Rock do Diabo” (1975) de Raul Seixas e aos blues de Zé Ramalho e do próprio Belchior de um lado, e do outro ao “eu” narrativo e aos óculos escuros hedonistas do “Vampiro” do “inimigo” “maldito” Jorge Mautner, transformado em pop bissexual por Caetano Veloso [16]. O narrador dessa e daquela canção parecia estar num impasse, equidistante entre os dois extremos que se configuravam também dentro dos corpos das próprias canções: ressentia-se dos outros que não haviam permitido sua ascensão ao olimpo (o que tinha lá seu senso, mas apenas parcial), e se ressentia de si, por não se sentir comprado por ninguém (o que era um evidente exagero).

Tal estágio de confusão se reproduzia no blues “Jornal Blues (Canção Leve de Escárnio e Maldizer)” (de Belchior com Gracco), em que o narrador se debatia para contornar os sensos comuns que via desabar sobre ele, de que fosse um cara “durão” – e machão –, “kitsch”, “sempre adolescente”, representante eterno do não (“não toques este disco! não me beijes, por favor!”, implorava já ao final da letra quilométrica). “Eu talvez seja o cara que você ama odiar, inimigo do peito”, sintetizava, transtornando qualquer escárnio ou maldizer em autodefesa, em efeito rebote. Mais ou menos parecido com isso acontecia em “Os Derradeiros Moicanos”, sobre “uns pobres diabos sul-americanos” que se pretendem cultos (e citam abundantemente Duchamp, Picasso, “Rimbaudelaire”, Henri Salvador, Jacques Brel etc.) e forjam um exílio voluntário na França (e disparam a cantar versos em francês). Tal pobre-diabo era (ou julgava ser) o próprio narrador, que metaforizava assim o alto grau de confusão em que seu discurso se encontrava preso e o antigo sentimento de auto-exílio do migrante nordestino. A temática seria motivo dois anos depois amplificado com maior perspicácia e normatizado com maior nitidez por Caetano Veloso em “Estrangeiro”, uma corruptela a “Os Derradeiros Moicanos” gritada no alto-falante de que Belchior não podia ou não conseguia dispor. Pois, afinal, o disco Melodrama era sua volta a um sistema sofisticado de gravação, à companhia de uma equipe forte de músicos, à possibilidade de trânsito de seu trabalho. E Belchior parecia desconfortável diante dos instrumentos à mão, lidando com eles de modo às vezes desconexo, às vezes frouxo, às vezes morbidamente desanimado. Era o narrador de “Dandy”, que não queria pertencer ao meio ao qual queria pertencer – equação complicada, mas diametralmente diferente da de Roberto Carlos e Caetano Veloso, que sempre quiseram fervorosamente pertencer ao meio ao qual pertenciam. “Eu é que sou um cara difícil de domesticar”, resumia, desconsolado, em “Em Resposta a Carta de Fã” – sim, esse narrador dândi até carta de fã respondia, mesmo que sua resposta tivesse mais cara de bronca (essa, sim, bastante amplificada) que de resposta.

Elogio da Loucura, 1988, BelchiorNa sequência, aconteceria a amplificação da própria confusão, no radical Elogio da Loucura (1988, ainda PolyGram). Os termos se elevavam no trio de (fracas) canções lotadas de sintetizadores que abriam o lado B do LP e também na canção de encerramento, “Arte-Final”. Após um lado A ameno (que rendia no máximo os trocadilhos tristonhos de “Balada de Madame Frigidaire” e a citação recombinada e desesperada de versos de sua própria obra em “Recitanda”), começava o bombardeio por “Lira dos Vinte Anos” (título roubado de poema do romântico Álvares de Azevedo), uma intensificação do conflito identitário anterior: “Meu pai não aprova o que eu faço/ tampouco eu aprovo o filho que ele fez/ sem sangue nas veias, com nervos de aço/ rejeito o abraço que me dá por mês”. O narrador não estava falando apenas do ressentimento masculino habitual entre pai e filho biológicos, mas também de música popular brasileira, como denunciavam novos versos de crítica à acomodação dos totens de sua geração: “Os filhos de Bob Dylan/ clientes da Coca-Cola/ os que fugimos da escola/ voltamos todos pra casa/ um queria mandar brasa/ outro, ser pedra que rola/ daí o money entra em cena e arrasa/ e adeus, caras bons de bola!”. Refluxo evidente de “Como Nossos Pais”, a canção tinha um narrador que já se sentia pai, que se autocriticava como tal (pois não estava excluído do rol de robertos, erasmos e caetanos contadores de vil metal que denunciava), mas não perdia o hábito arraigado de reclamar dos pais – se o narrador amargurava seu próprio fracasso, ao menos a culpa não era dele, mas antes do pai artístico que o concebera – Bob Dylan, Mick Jagger, Caetano Veloso, Roberto Carlos e quem mais chegasse. Caía na própria armadilha – a crença ilusória de que o inferno são sempre os outros –, que era expressa na inadequação desanimada de arranjos e programações eletrônicas de sopro kitsch, vaporosos.

Em seguida vinha “Os Profissionais”, crítica contumaz à geração yuppie que deitara e rolara e se esbaldara nos anos 80. “Onde anda o tipo afoito/ que em 1-9-6-8/ queria tomar o poder?/ hoje, rei da vaselina,/ correu de carrão pra China/ só toma mesmo aspirina/ e já não quer nem saber”, metralhava, tentando compor uma chanson francesa de acordeom alvejada por mais versos em francês. O tiro saía pela culatra: a estruturação musical da canção fazia lembrar da proto-sertaneja e ultra-kitsch “Caminhoneiro” (1984), de Roberto Carlos (o que talvez até fosse uma outra crítica mais ou menos sutil, mas remetia de novo a profundo conflito de identidade). O próprio narrador entregava os pontos, afirmando que “dancei no pó dessa estrada”, descuplando-se/confessando-se que “perdão, que perdi o pique” e concebendo a mais grandiosa constatação de um artista brasileiro de sua faixa etária, que outros de sua geração (ou de quaisquer outras) sempre deram uma fortuna para ocultar diligentemente: “Muito jovem pra morrer/ e velho pro rock’n’roll”. Estava ali exposto e sangrando o conflito de qualquer artista maduro de música pop, e mais particular e significativamente o do próprio Belchior: envelhecer, naquela profissão, seria algo doloroso à beça. Se enroscados pela mitologia assassina de juventude eterna da música pop, ídolos do rock se arriscavam a consumar sua maturidade num longo buraco negro entre a “aposentadoria” e a morte. A maturidade era idade de acesso vetado a eles – e era contra essa ideia que Belchior se debatia freneticamente, expondo com valentia incomum as chagas descarnadas.

O terceiro momento era “Kitsch Metropolitanus” (parceria com Jorge Mello), daquelas canções de encontrar falso alívio na culpabilização retroativa do próximo. “Que gente fina, gentinha,/ rainha em puxar tapete/ não posso entrar numa sala/ que eles vêm de cassetete/ kitsch metropolitanus/ essa moçada promete/ garotos, clones, mutantes/ com que gastar meu confete?”, cantava em reggae barato, dirigindo-se à nata ascendente da geração yuppie, que tachava de “comedor de hambúrguer”, “mascador de chiclete” e ”beberrão de keep cooler”. Ele, que sempre clamara pelo novo, enxergava os novos roqueiros dos 80 como meros clones arrivistas. Confuso, deixava o cuspe cair na testa, ele próprio um trovador eletrônico perdido entre os clichês do reggae, da new wave e da new age.

“Arte-Final”, procurando concluir a turbulência de Elogio da Loucura, voltava à crítica enfezada aos jovens yuppies (mas, aos mesmo tempo, aos senhores acomodados de sua geração): “Donde están los estudiantes?/ os rapazes latino-americanos?/ os aventureiros, os anarquistas, os artistas,/ os sem-destino, os rebeldes experimentadores,/ os benditos malditos, os renegados, os sonhadores?/ esperávamos os alquimistas, e lá vêm os arrivistas, consumistas, mercadores”. Totalmente na contracorrente dos despolitizados anos 80-90, Belchior se colocava uma vez mais em posição de isolamento, de nobre que atira pérolas aos porcos sem que os porcos percebam sequer sua presença. Sem medo de palavras inteiras, reconhecia, bravateiro e ineficaz: “Dancei, sei que dancei, dancei, meu bem/ mas vem que ainda tem!”. Apelava ao eterno retorno, de palavras tais como as primeiras que o artista Belchior proferira muitos anos antes: “Sessão de nostalgia, isso é lá com minha tia/ alô, presente, estou chegando! alô, futuro, já vou!”. Em breve o artista teria que morder as próprias sílabas. Estava em curso uma ampla, geral e quase irrestrita sessão nostalgia.

 

* * *

 

Pessoal do Ceara, 2002, Ednardo, Amelinha e BelchiorÉ que já em 1990 Belchior iniciaria um profundo e vicioso processo de auto-revisão e de repetição e regravação contínua das glórias passadas, quase sempre assentadas naquele esqueleto “A Palo Seco”/“Como Nossos Pais”/“Apenas um Rapaz Latino-Americano”/“Paralelas”/“Medo de Avião”/outras poucas. Desse modo foram concebidos, passo por passo, os discos de reminiscências Trilhas Sonoras (ao vivo, Continental, 1990), Contradança – Acústico (Paraíso Discos, 1991) [17], Eldorado (Movieplay, 1993) [18], Acústico – Um Concerto Bárbaro (PolyGram, 1995), 25 Anos de Sonho, de Sangue e de América do Sul (Camerati – gravadora independente de que Belchior foi um dos donos –, 1996), Antologia Lírica (Camerati, 1999), Auto-Retrato (BMG, 1999) e Pessoal do Ceará (Continental, 2002), este último gravado em companhia de os Ednardo e Amelinha, com apenas duas músicas inéditas entre sucessos antigos dos três artistas cearenses [19].

Auto-Retrato, 1999, BelchiorTambém retrospectivo, mas de tez diferente, foi o álbum Vício Elegante (GPA, 1996), dedicado a releituras de não-sucessos de Chico Buarque, Caetano Veloso [20], Roberto e Erasmo [21], Zé Ramalho, Adriana Calcanhotto, Marina Lima e do ídolo cafona-romântico Márcio Greyck (em “Aparências”, chororô pessimista de 1981 composto por Cury e Ed Wilson), entre outros vários. Entre nove discos de autofagocitose concebidos em 12 anos, uns poucos se auto-autorizavam, fosse pela extrema delicadeza de arranjos e releituras (25 Anos de Sonho, de Sangue e de América do Sul) ou pela relevância do projeto (o álbum de reencontro conterrâneo melancólico – e primeiro encontro discográfico – com Ednardo e Amelinha). Audaz mesmo, embora malsucedido, foi Auto-Retrato. A multinacional BMG (ex-RCA Victor) se interessara por lançar uma antologia acústica em álbum duplo de Belchior, a exemplo do que fizera dois anos antes, com pleno sucesso, com Zé Ramalho, e repetira na sequência com Geraldo Azevedo e Fagner. Belchior aceitou, mas apenas em parte – seu espírito de ovelha negra não aceitaria assim tão facilmente a fórmula do sucesso que a gravadora pensava haver encontrado. Produzido por Ruriá Duprat (sobrinho do maestro tropicalista Rogério Duprat) e secundado por fortíssimo time de músicos de São Paulo, Belchior preferiu avançar corajosamente pelo novo, elegendo pitadas de sonoridades noventistas de drum’n’bass, trip hop, canto-fala de rap (“Na Hora do Almoço”), scratches de hip hop e novas fusões nordestinas para salpicar a desconstrução de mais uma bateria de regravações de sua fortuna artística. Entre faixas mais “modernas”, bem pontudas (“Alucinação” era o mais potente exemplo), outras apelavam para o jazz ou para elaboradíssimos arranjos de piano ou de violinos. O novo e o velho convivendo como nunca no mesmo sujeito, foi só mais um lampejo do aparentemente indestrutível conflito belchioriano, consumado no arranjo pós-moderno da canção final, a brava “500 Anos de Quê?” (recolhida de Bahiuno, disco de que se vai falar adiante). Algo mais revalidava tal conflito: projetos revisionistas como acústicos, discos ao vivo, encontros musicais e projetos de releituras de outros compositores se tornaram verdadeira coqueluche comercial no Brasil da segunda metade dos anos 90 em diante, forrando os bolsos de dezenas de artistas que antes vinham em processo de derrocada particular (que por sua vez acompanhava a derrocada mais geral da MPB como um todo); os de Belchior, precursores, devem ter engordado também seus bolsos, mas nunca chegaram a se tornar fenômenos de massa ou recordistas de vendagem. Esses méritos ficaram para os volumes da série Acústico MTV de Roberto Carlos, Gilberto Gil, Rita Lee, os oitentistas Titãs e Paralamas do Sucesso etc. Belchior, não – preferiu o experimentalismo. Talvez pela primeira vez teve uma ideologia musical firme por trás de si (cortesia da família Duprat), mas o belo disco passou desapercebido. Alguma coisa muito nova não estava por acontecer.

Baihuno, 1993, BelchiorComo nota e adendo: em Belchior, o hábito revisionista só foi em parte quebrado, de 1988 em diante, pelo CD independente Bahiuno (Movieplay, 1993). Delicado exercício de análise sobre o que tem sido a história do Brasil, constituía-se de vários “movimentos”, por que iam passando em flashes a América e o Brasil pré-descobrimento, a vida interiorana, a migração e o desejo de volta, os párias sociais todos, desilusões amorosas e artísticas… Também havia espaço para regravações, mas dessa vez Belchior escolhia temas seus que não haviam sido assimilados, de discos obscuros como Cenas do Próximo Capítulo (“Onde Jaz Meu Coração”, aquela do “reino do abandono” nordestino, ou “S.A.”, na verdade um trecho do “Rock-Romance de um Robô Goliardo”) e Elogio da Loucura (a frígida “Elegia Obscena”, a crepuscular “Arte-Final”).

A reanálise de si aparecia em canções novas, como a eloquente faixa-título (seu dono não era baiano, como Dorival, João, Caetano e Gil, mas antes “bahiuno”), de um eu-lírico que se indispunha ainda uma vez com sua família sanguínea e com sua família musical: “Fora-da-lei, procurado, me convém família unida contra quem me rebelar”. Adiante, emitia avaliação sobre si que pretendia fazer definitiva a vida errática do moço e do cantor: “Ao pastor da minha igreja reza que esta ovelha negra jamais vai ficar branquinha/ não vendi a alma ao diabo, o diabo viu mau negócio nisso de comprar a minha/ se meu pai, se minha mãe se perguntarem, sem jeito, ‘onde foi que a gente errou?’/ elogiando a loucura, e pondo-me entre os sonhadores, diz que o show já começou”. Lá na frente, em “Ondas Tropicais”, o bardo desiludido voltava à toda, tomando para si e sua natureza a exclusão de que se via vitimado no tecido MPB: “Na província Hollywood/ eu era um brando farsante”. Bahiuno era um narrador que já não cria em si, a elaboração madura do pária que se autodenunciara desde o primeiro instante.

Mas eram “Amor e Crime”, “Balada do Amor Perverso” e “Se Você Tivesse Aparecido” (e também, de volta, “Elegia Obscena”) que retomavam a verdadeira e quase sempre esquecida epopeia belchioriana. Baladas de suspeição sobre o amor, traziam à tona morna a desdita e a descrença em tal sentimento. “Amor e Crime” disparava: “Amor, não há amor,/ existem só provas de amor/ mas, no amor,/ provas não bastam/ tudo mentira/ tudo cinema/ apenas cenas”. “Balada do Amor Perverso” reforçava: “Não quero amar, não, nunca mais/ que esse negócio de amor/ já não se faz sem punhais”. E “Se Você Tivesse Aparecido”, afinal: “Se você tivesse aparecido/ esta droga de existência/ se mudaria em viver”. Os últimos versos dessa mesma canção (“pegar carona nesta decadência é o fim/ como pôde acontecer?”) poderiam denotar um narrador maduro que olha sua vida para trás e só encontra desencanto. Mas esse era, afinal, o mesmo narrador assaltado que dizia desde “Como Nossos Pais”, ainda bem jovem, a frase-símbolo “não quero lhe falar, meu grande amor…”. Não importava que palavras completariam aquela frase – elas desvelavam não um vácuo na capacidade de amar, mas antes a incapacidade de lidar com a palavra, com o tema, com o sentimento. Porta-voz do “não”, Belchior andara a vida toda dizendo “não” também ao amor, mesmo quando dizia que não estava dizendo. Andara estrada afora apontando dedos e versando sobre a política, sobre a cultura, tantas vezes por pudor de falar simplesmente de amor. Seu narrador predileto vivia acometido desse pudor contínuo, como aquele da velha “Divina Comédia Humana”, aquela em que reclamara de um analista amigo que criticara sua pouca propensão ao amor – ali, o encarte do disco de 1978 transcrevera os versos “eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia/ fazendo amor e de novo dizendo/ sim à paixão/ morando na filosofia”, mas não era o que o cantor cantava. Em suas várias versões, “Divina Comédia Humana” sempre teve esse trecho proferido com desconforto, com rapidez e, mais, trocando “fazendo amor” por “fazendo tudo”. Belchior era então, e para sempre seria, o cantor profundamente romântico que não sabia falar de amor. Estava no lado oposto do ringue com Roberto Carlos, o cantor profundamente romântico que só sabia falar de amor. Linhas paralelas, seguiram retas sem retoques, à espera de se encontrarem, quem sabe, no infinito.

 

[1] Em Milton, Odeon, 1970.

[2] “Pavão mysteriozo” virou sucesso nacional, mas só dois anos depois, quando o dramaturgo Dias Gomes a colocou na posição de tema de abertura da telenovela global Saramandaia, realismo fantástico protagonizado por Juca de Oliveira como um homem que de repente descobria asas nascendo em suas costas.

[3] Sua gravação saiu em 1975, mas só se tornou sucesso de massa mais tarde, com a inclusão da faixa na trilha da novela global Duas vidas (1976-77), de Janete Clair. Vanusa ainda gravaria, de Belchior, “Brincando com a Vida” (1977) e “Espacial” (1979). Seu então marido, o ídolo romântico pós-iê-iê-iê Antonio Marcos, gravou “Todo Sujo de Batom” e a utópica “Voz da América”, ambas em 1976. “Voz da América” receberia versões em pique popular de Maria Alcina (1979) e Jessé (1981).

[4] Em regravação de 1986 dessa canção, Belchior apôs aos “seus metais” (ele não cantava “vis”, como Elis) o cantarolar “iê iê iê iê…”.

[5] Note, de novo, a obsessão geracional.

[6] Jornal do Brasil, 8 de agosto de 1976. Na mesma entrevista afirmava, em tom igualmente provocativo: “Eu não sou do tempo da bossa nova, sou do tempo do rock”.

[7] Folha de São Paulo, 30 de agosto de 1977.

[8] O parêntesis e a interrogação dúbios não eram evidentes no canto, mas constavam do encarte.

[9] Em “Apenas um Rapaz-Latino Americano”, Belchior pedia: “Por favor, não saque a arma/ no saloon eu sou apenas o cantor”.

[10] Jornal do Brasil, 30 de agosto de 1978.

[11] Folha de São Paulo, 27 de agosto de 1978.

[12] No encarte do disco, a letra dessa canção era disposta em forma de poema gráfico, retomando tática concretista abandonada desde o primeiro disco.

[13] Àquela altura, até o colega paraibano de geração Zé Ramalho se fartara de ouvir Belchior reclamando o advento do novo, e desferia sutilmente em “Falas do Povo” (em A Peleja do Diabo com o Dono do Céu, Epic/CBS, 1979): “Falo da vida do povo/ nada de velho ou de novo”. Por trás de tais versos soava o violino de Jorge Mautner, que fora a público defender os tropicalistas contra as “barbaridades” que Belchior vinha lhes desferindo.

[14] Um canto gregoriano era ouvido ao fundo dessa canção, reminiscência dos tempos de seminarista de Belchior.

[15] Os parênteses e as maísculas eram usados na transcrição da letra no encarte.

[16] Em gravação de Cinema Transcendental, Philips, 1979.

[17] Contradança foi lançado em CD pela Movieplay, sob o nome A Divina Comédia Humana. Há apenas uma música de diferença entre os dois discos, nos quais Belchior refaz seus sucessos acompanhado apenas pela dupla de violonistas Duofel (Fernando Melo e Luiz Bueno).

[18] Dividido com o duo tradicional uruguaio Larbanois-Carrero, esse disco merece o registro de materializar a sonhada união utópica da América Latina – nele, Eduardo Larbanois e Mario Carrero se dedicam exclusivamente a verter canções de Belchior para o castelhano.

[19] Fagner foi excluído por desacordos pessoais entre o grupo. Rodger e Tetty, do “Pessoal do Ceará” originário, estavam distantes da música popular em 2002.

[20] A obscura e anódina “O Nome da Cidade”, lançada por Maria Bethânia em A Beira e o Mar (PolyGram, 1984).

[21] A obscura “O Tolo”, extraída do disco de 1989 de Roberto Carlos.

 

(*) Faço esta chorosa publicação pensando em Antonio Rogério Toscano. Em Eduardo Nunomura. Em Jotabê Medeiros (muito trabalho pela frente, meu irmão!). Em Dilma Rousseff Luiz Inácio Lula da Silva (que em 29 de abril de 2017 foram conterrâneos gaúchos da morte de Belchior). Em Getulio VargasJoão Goulart Leonel Brizola (que também). Em Haroldo Ceravolo Sereza. Em Ivana Jinkings. Em Jorge Mello. Em Manuela Carta Mino Carta. Em minhas irmãs briguentas Lilian Myriam.

A caixinha de sonhos de Almério

$
0
0

Almério

“Poxa, a gente pode fazer música?” foi a pergunta que o pequeno Almério se fez quando ouviu uma vizinha tocar violão. Nascia ali, na cidade natal de Altinho (PE), o artista, que se mudaria aos 20 anos para Caruaru munido de sua “caixinha de sonhos”, para trabalhar numa banca de revistas. Hoje, aos 36 anos, ele vive entre essa cidade do agreste pernambucano e a capital do estado, Recife. Desempena, o segundo álbum do cantor, compositor e ator, nasce contemporâneo da morte do cearense Belchior, antigo compositor de canções sobre artistas nordestinos que migravam para o sul em busca do sucesso e do reconhecimento e tinham de ir dormir na rua.

“Eu consegui ter um alcance mesmo ficando no meu lugar”” comemora o artista, premiado em votação popular para arrebatar edital da gravadora/patrocinadora Natura Musical (que mantém Desempena disponível para download gratuito). “Isso é um movimento muito importante, que eu comungo muito com os meus parceiros musicais. A gente sempre está falando sobre isso, sobre como era bom que a gente pudesse também transformar aqui”, afirma o filho de muitos exílios nordestinos permanentes ou temporários, fosse o de Belchior, o dos tropicalistas ou, mais recentemente, o dos pernambucanos do manguebit.

Influenciada pelos aboios do avô na zona rural de Altinho e pelas bandas de pífanos de Caruaru, a música de Almério nasce com tonalidades modernas e tributária da, digamos, MPB heroica dos anos 1960 e 1970. Apadrinhado pelos pernambucanos Alceu Valença e Geraldo Azevedo e pela paraibana Elba Ramalho (convidada especial na faixa “Do Avesso”), ele conheceu o Rio de Janeiro no mês passado, quando fez abertura para o show O Grande Encontro, dos três artistas nordestinos.

As canções pungentes e de sonoridade maior comunicam-se com as gerações nordestinas anteriores no que têm a dizer sobre o medo, sobre o amor, sobre o não-amor. É o caso de “Não Nasci pro Amor”, dos compositores contemporâneos Juliano Holanda e Martins, numa tradição que vem de Belchior e deságua no “Não Existe Amor em SP” (2011) do paulistano Criolo. “A música já começa dizendo ‘eu não sou do amor’, vixe, eu nunca escutei uma música que começasse assim. Aquilo já me despertou, não pensei em nada, fui tomado pela emoção”, ele explica.”Não diz respeito a mim, não, eu queria cantar isso para as pessoas. Acho que sou muito amoroso”, ri.

Desempena, Almério, 2017À tradição de medo e desamor vem se somar a tradição libertária de Ney Matogrosso, exposta no figurino de asas da capa do CD (já presente no álbum de estreia, Almério, de 2013)Almério, 2013 e do videoclipe da lancinante “Segredo”, de Isabela Moraes, sobre o amor entre dois homens e uma mulher, sob versos de medo (“esconder o medo/ é guardar-se da chuva no frio”) e de superação do medo (“tentou manter segredo/ mas o mundo viu”). No figurino da capa, uma recombinação entre Secos & Molhados, o “Pavão Mysteriozo” (1974) de Ednardo do Pessoal do Ceará e o personagem alado da telenovela Saramandaia (1976), Almério expõe uma personalidade polissexual ao mesmo tempo que resguarda o autor por trás do personagem por trás do autor. 

O medo prevalece ao mesmo tempo que é enfrentado, assim como o pulso das diásporas oscila entre a migração e a permanência. Belchior e o Nordeste forte não morrerão enquanto cantarem por vozes novas como a de Almério. 

Pedro Alexandre Sanches: Para começo de conversa, queria que você falasse das suas origens, tanto musicais quanto pessoais.

Almério: Origem musical, eu sempre me entendi, desde que nasci mesmo, como uma pessoa que veio com uma missão de fazer música e arte no mundo, desde pequeno. Fui entendendo isso ao longo da vida. Conheci Paula, uma vizinha minha que tocava violão. Quando ela me mostrou que fazia música, eu disse: “Poxa, a gente pode fazer música?”. Eu só ouvia na televisão e no rádio, e ela estava me mostrando música ali pertinho. Então comecei a compor muito cedo, com 13, 14 anos.

PAS: Isso é em Caruaru?

A: Em Altinho, que foi onde eu nasci. Nasci em Altinho, e Caruaru pariu o artista. E com doses muito fortes de MPB. A gente ficava escutando muita MPB, muita música brasileira. Depois fui para Caruaru e conheci as bandas de pífanos de Caruaru, os artistas de Caruaru. Trabalhava numa banca de revista. Um estúdio ficava em frente a essa banca de revista, então comecei a permear esse universo da música em Caruaru. E quando me deparei com a Banda de Pífanos de Caruaru, pensei “meu Deus, eu nunca ouvi um som desse antes na minha vida, nunca vi isso no mundo”. Era tão peculiar e tão poético. Fui me infiltrando nessa música de Caruaru, de Pernambuco. E sou essa parabólica louca, até hoje atento às coisas à minha volta.

PAS: E sobre a origem familiar? Quem são seus pais, de onde vieram?

A: Meus pais são da zona rural. Foram morar em Altinho, mas não tem ninguém ligado à música. A coisa da música veio dentro de mim mesmo. Não teve ninguém, nenhum incentivo. Só o meu irmão mais velho me incentivava. Esse universo rural, do mato, está muito dentro de mim. Sou muito brejeiro. Isso está muito aqui dentro. Cresci na fazenda dos meus avós. Cresci vendo meu avô aboiando, colocando toadas de manhã, colocando aboios de manhã. O jeito dele conduzir os animais da fazenda era aboiando, e eu fui aprendendo a aboiar com ele (faz sons de aboio). Isso me inspirava muito também. Ele subia a porteira e chamava todos os bichos aboiando. Aboiar é um canto, né? Essas coisas interioranas ficaram muito dentro de mim.

PAS: Como é a cidade de Altinho?

A: Altinho é uma cidade pacata. Quando eu morava lá, até uns 15 anos atrás, era uma cidade tranquila, como qualquer cidade do interior, mas não oferecia nada para minha arte. Era tudo em volta da prefeitura, todos os empregos. Não tinha apoio, o poder público não apoia a arte, não incentiva a cultura. Então tive que ir para Caruaru, para fazer música lá. Assim era minha cidade, que hoje está muito tomada pela violência, pela droga. Quando morei lá não havia espaço para fazer arte, então guardei tudo na minha caixinha de sonhos para abrir quando eu tivesse espaço, e foi em Caruaru.

PAS: Com que idade você foi para lá?

A: Cheguei em Caruaru com 20 anos.

PAS: Foi para estudar?

A: Não, eu fui para trabalhar. Trabalhava numa banca de revista no centro da cidade.

PAS: Você é ator também.

A: Aí entrei no teatro. Já fazia peças amadoras na escola, cantava, mas quando fui para Caruaru senti essa necessidade. Porque quando comecei a cantar nos bares, na noite de Caruaru, eu não me movia, não levantava nem uma mão. Eu não tinha gestual. Então entrei no teatro, passei num teste, entrei para me melhorar, para ter uma noção de espaço cênico, me melhorar como artista e cantor, que é o que eu sou. O ator ajudou muito o cantor.

PAS: Hoje você mora onde?

A: Hoje estou entre Caruaru e Recife, mais em Recife. Caruaru, na verdade, é onde está o brejo, onde vou fazer minhas trilhas, entrar em contato com a natureza. E Recife é para trabalhar. A gente está tentando levar meu novo disco para São Paulo, Rio. Abri o show do Grande Encontro mês passado, foi meu primeiro show no Rio. Foi maravilhoso, bem bonito. Nunca tinha ido no Rio, fui e já cantei.

PAS: Nas gerações anteriores de músicos do Nordeste, praticamente todos vinham para o sul para fazer sucesso. Sua história já é diferente dessa.

A: Eu consegui ter um alcance mesmo ficando no meu lugar. Isso é um movimento muito importante, que eu comungo muito com os meus parceiros musicais. A gente sempre está falando sobre isso: como era bom que a gente pudesse também transformar aqui, que tivesse um alcance maior para que os músicos das outras cidades também viessem para cá e tivessem espaço para fazer, esse intercâmbio. Todo mundo ganharia com isso, como ajudaria também centros culturais fortes como São Paulo, Rio. Pernambuco também é muito forte, mas precisa crescer mais. O Carnaval do Recife abriga uma quantidade de músicos maravilhosos, mas o ano todo devia ter mais atuações.

PAS: Falando do trabalho musical, já são dois discos. Sobre o que você canta e escreve?

A: O humano me interessa muito. Eu gosto de ficar olhando as pessoas na rua. Às vezes vejo uma pessoa com um olhar que vai dar no infinito, aquele olhar perdido. Quero saber onde é esse infinito, onde essa pessoa está, onde ela pretende chegar com aquele olhar. O humano me inspira muito. E as coisas pelas quais passamos todos os dias. As crises humanitárias me deixam muito abalado, a violência. Nós somos estimulados todos os dias por tragédias, truques, mentiras, coisas demais. Isso tudo me deixa muito triste, de saber que há um bloqueio no humano. Está todo mundo muito triste, muito sem saber para onde ir. Isso me deixa muito triste também. Mas minha sonoridade é mais terral, nos dois discos. Busco mais uma crueza, um som mais terral, dos tambores que extraí das bandas de pífano. Tento dar minha cara, desmembrar a banda de pífano e botar ali minha digital.

PAS: Você pode explicar o significado dessa palavra, terral?

A: Terral… É um som mais cru, mais direto, mais (pensa)… Sabe quando você sente seus pés no chão? Quando você bate, tem um som mais cru. É essa crueza que quero levar, de pé batendo no chão. Tanto que vem das forças também, da areia, da terra.

PAS: Talvez seja uma palavra nordestina, tinha uma música do Pessoal do Ceará (Ednardo, Rodger Rogério e Téti) chamada “Terral” (1973). Aqui a gente não ouve essa palavra, por isso perguntei.

A: É, e o terral vem das danças daqui, o xaxado, o coco. Comunga muito com a sonoridade que as bandas fazem, o som dos tambores da banda de pífanos, a alfaia, a zabumba. Quando canta coco, você sai batendo o pé no chão, feito sobre tambor. Tento levar esses sons para a sonoridade dos meus discos, essa cultura popular, só que dando as minhas intenções para isso.

PAS: O xaxado, o coco, essas variáveis todas não são tão imediatamente audíveis no seu som.

A: O coco, quando você coloca as tamancas, faz um som maravilhoso. Você tira o som do próprio pé. Tem muito a ver com a zabumba das bandas de pífano, um som seco, feito com as mãos. É muito mais terra que o próprio som do instrumento. A pele da zabumba tem que dar uma aprochada para não ficar tão aguda, para ficar mais gravona.

PAS: Acho que nem é de sua autoria, mas a canção “Não Nasci pro Amor” me faz pensar no Belchior, que perdemos outro dia. Ele tinha canções sobre não acreditar no amor…

A: Essa música é de Juliano Holanda, que é produtor do meu disco, com um jovem compositor daqui de Recife chamado Martins. Quando eles me mostraram, vou ser bem sincero, eu nem pensei em nada. Só que a música já começa (canta) “eu não sou do amor”, vixe, eu nunca escutei uma música que começasse assim. Aquilo já me despertou. Não pensei em nada, fui tomado pela emoção. Depois comecei a refletir sobre a música, sobre esses estímulos todos que sofremos todos os dias e nos fazem desacreditar mesmo do amor que a gente inventou. A gente inventou Deus, como inventou o amor. Quando você não acredita mais no amor, é uma desilusão, uma desilusão maior que uma desilusão amorosa – que também é, mas é uma desilusão humana, humanitária, existencial. Então tive vontade de cantar e mostrar essas músicas para as pessoas. Elas precisam ouvir essa música, ela começa muito forte.

PAS: Essa letra diz respeito ao Almério, ou não tem nada a ver?

A: Não. Ela não diz respeito, não. Eu queria cantar isso para as pessoas. Não tem, não, acho que sou muito amoroso (ri).

PAS: É curioso que esse tema tem voltado, o Criolo tem “Não Existe Amor em SP”, agora aparece essa.

A: Pois é. Eu gosto de cantar esse tema. Mas eu tenho muito amor pelas coisas, pelas coisas à minha volta, pelos elementos, pelas pessoas. Não é que eu não seja um ser que acredita, esperançoso com a humanidade, não é isso. Eu tenho amor pelas pessoas.

PAS: O amor que a gente acostumou a entender é uma invenção também. Não é ser contra o amor, mas talvez contra uma leitura sobre o que seja o amor?

A: Pronto, uma leitura, exatamente.

PAS: Se fosse resumir o que você canta, quais são seus temas mais caros?

A: Olha, poxa, acho que vou ser meio repetitivo, mas insisto, acho que eu gosto de melhorar o outro através da minha música. E chegar no outro. A música facilita muito isso. Me entendo como intérprete-compositor, mas o intérprete também é muito forte dentro de mim. Gosto de cantar o humano e tudo que o envolve.

PAS: Se fosse para você citar alguns nomes de artistas brasileiros, quem é referência para você? Quem te influencia? Essa pergunta é meio chata…

A: Eu gosto, eu gosto. Estou muito escutando as próprias músicas daqui, muito voltado para as produções daqui de Recife. A música pernambucana me agrada muito, Juliano Holanda, que é produtor do meu disco e é por isso mesmo que eu o escolhi, Geraldo Maia, que é um grande intérprete daqui, Martins, Isadora Melo, Mas também, poxa, não paro de escutar Caetano Veloso, ele sempre me surpreende. Acho os discos novos que ele tem feito maravilhosos. Gosto muito de Otto. Mas continuo me maravilhando com Adriana Calcanhotto. Às vezes revisito as obras do lado B do artista, volto para a obra de Alceu Valença, tenho me maravilhado com o disco Quadrafônico (1972), dele e Geraldo Azevedo. É incrível, a MPB psicodélica de Pernambuco. É um disco que me surpreende muito. Saio absorvendo. Escuto muita coisa. Não paro de escutar Cinema Paradiso, que é trilha de cinema, gosto demais.

PAS: O texto da Natura sobre o disco novo cita Ney Matogrosso Elba Ramalho – ela também porque participa do disco, e ele como influência.

A: Elba é muito inspiradora para a gente, é uma flor psicodélica no meio do chão mais seco, da região mais seca, da cultura agrestina. Fico muito emocionado com tudo que ela conquistou. Ela é uma grande inspiração para mim, tanto no modo de cantar, que é muito dela, muito único, como na escolha do repertório e na força que tem no palco. E Ney nunca foi uma influência direta para mim. Ney influenciou todo o Brasil. Toda a fase de androginia que veio à tona foi por causa de Ney. Ele é o grande mestre. Mas depois que fui beber de outras fontes, bebi muito Ney nos 20 e poucos anos, nem como performer, mas mais como intérprete mesmo, de voz, o jeito de cantar. É um ser divino para mim, muito corajoso, muito inspirador. Tudo que ele fez vai soar por séculos, nos abriu muitas portas.

PAS: E na questão da androginia? A capa do disco faz lembrar.

A: Eu não sou muito livre, não tinha aquele universo de liberdade no palco. Eu não vestia figurinos. O teatro foi que me abriu essa coisa do gestual e do figurino. A primeira vez que fiz um show com figurino me senti muito poderoso. Me deu um entendimento de palco maior. Eu pude ser outro. Então cantei mais forte, fiquei mais forte, mais perto do público. Encarava mais o público, tive mais coragem, porque estava encouraçado, com um figurino que me deixava muito potente. Foi aí que me aproximei da coisa que o Ney fez. Foi muito natural, não foi querer o mesmo estilo, querer ser ele, não foi. Quando vesti o figurino, disse: “Gente, não sei se vou ter coragem”. Minha produtora disse: “Não, você nunca mais vai poder tirar esse figurino, vai ter que entrar com ele agora”, e me empurrou para o palco. Quando vi estava no palco, com figurino, com as asas. Caralho, o que é isso que eu estou sentindo? Foi uma coisa que me invadiu, muito forte. Aí não deixei mais, não consigo mais sair do figurino, que me faz ser livre no palco, fazer os movimentos que dançam com meu canto, contam uma história.

PAS: Foi curioso, você deve ter ouvido já, sua resposta foi exatamente igual à do Ney. É o que ele fala, que se fantasia entre aspas, ou veste figurinos diferentes porque acabam protegendo ele, que na realidade é muito tímido e diferente do personagem.

A: Caramba, eu nunca ouvi isso, lhe juro, que coisa linda. Que lindo, que foda.

PAS: Mas é o que você sente também? Você falou “encouraçado“, é uma palavra muito significativa. É uma proteção?

A: É uma proteção. Acho que, além da proteção, ela também me ajuda a contar esse show, essa história. Um show para mim é um livro cantado. Um disco para mim é um livro cantado. Então me ajuda a contar, a envolver o público, a me envolver com o show, com os músicos. E me dá um respeito. Quando chego de figurino nos lugares, por mais chamativo que ele seja, as pessoas param, têm respeito. Sei lá, eu fico invisível, o que é muito bom. É ótimo, eu adoro ficar invisível.

PAS: É isso que o Ney fala mesmo, o figurino tem esse significado.

A: É ótimo, porque quando a gente está invisível dá para sentir mais a vida, absorver mais da vida, das coisas, das pessoas. Não quero perder o contato com as pessoas. Faço meu trabalho, mas não quero, a arte para mim não pode ser só vaidade. Se for só vaidade para mim não tem sentido. Eu tenho que interferir em algumas coisas. Eu me entendo como missão no mundo, meu caso de amor é com a música.

PAS: Sem o figurino existe uma timidez? Ou não chega a ser por isso?

A: Uma timidez com o figurino?

PAS: Não, quando você não está com ele. O Almério original, digamos assim, é tímido ou não?

A: (Pensa.) Eu já fui muito, hoje não sou, não. Já fiz teatro. Sou na minha, respeito as pessoas, fico na minha. Tenho minhas patotas, gosto de farra, de ficar às vezes livrão, correr, deitar na grama, gritar para o mundo. Tenho meus acessos também. Não sou um homem tímido, não. Hoje mais não, já fui muito. Não sou, não. Sou um homem, sou na minha, respeito todo mundo, e pronto. Sei me comunicar com as pessoas, gosto de me comunicar. Olho nos olhos das pessoas, não sou um homem tímido, não. Mas já fui, já fui muito. O teatro foi que abrandou isso. Às vezes me amedronto com algumas coisas, mas não é timidez, é mais insegurança. Tenho minhas inseguranças, mas não sou um homem tímido, não. Com você eu estava meio inseguro.

PAS: Ah, para com isso… Ao vivo seria mais legal que por telefone, um dia vamos fazer.

A: Um dia a gente se encontra e se dá um abraço. Achei muito bonita sua declaração, fiquei muito emocionado. Mesmo não fazendo a correlação entre eu e Belchior, mas você me dar essa força através de suas palavras, que têm muita força também. Muito obrigado.

PAS: Que é isso, você mais que merece. Comecei a ouvir o disco naquele dia e cada dia gosto mais. É muito bom.

A: Que coisa boa, que coisa maravilhosa de escutar. Estamos tentando fechar dias 8 e 9 no Sesc Santana, está para confirmar.

PAS: Você nunca tocou aqui?

A: Nunca toquei em São Paulo. Participei de um musical de João FalcãoGabriela, um Musical, e passei cinco meses aí. Me apresentei no Instituto Tomie Ohtake, fiquei cinco meses com 21 atores no palco, cantando Gabriela, um musical lindíssimo, com muitos números de música brasileira. Foi bem bonito, uma experiência única. Mas nunca fiz show em São Paulo, não. É meu sonho. Passei no Teatro de Arena, no lugar onde Elis Regina se apresentava, na praça Roosevelt. Tomei doses de uísque lá, muito emocionado, lembrando que Elis cantou ali, que Maria Bethânia cantou ali. Ah, já fiz tudo que todo mundo faz, fui na esquina em que Caetano compôs “Sampa”. Tenho muita vontade de abraçar São Paulo com meu canto. São Paulo é muito inspiradora, tive a sorte de conhecer através de Isabela Moraes, uma compositora que está fazendo shows por aí. Conheci uma São Paulo muito poética, muito bonita, mesmo sabendo de todas as dificuldades que ela tem. É uma cidade que precisa de remédios para dormir, mas uma cidade muito inspiradora.

PAS: E você acabou citando a referência de Elis, que não tinha citado antes.

A: Elis Regina, muito forte. Elis, Bethânia, acabei esquecendo de citar.

PAS: Foi porque falou só dos homens.

A: Foi. Elis, Cássia Eller, Bethânia. O jogo que elas fazem e fizeram é um jogo que eu gosto de fazer, um jogo cênico muito forte. Atinge diretamente, e é verdadeiro, não é mentiroso. Não gosto de tudo muito plástico. A música hoje em dia está muito plástica. Isso me incomoda. Tem coisas no meu disco que eu deixei, coisas que estão gritadas, mas deixa assim, está verdadeiro. Quero que seja assim. Não corrige, deixa assim.


Jornalismo cultural em CoMa

$
0
0

IMG_1407

Chamou-se Convenção de Música e Arte, sigla CoMa. Aconteceu em Brasília, Capital do Golpe, entre 5 e 7 de agosto de 2017. Pareceu propício o nome, pelo número assombroso de instituições que, no Brasil pós-golpe, se encontram em estado de coma. De torpor. De anestesia. De ataque epiléptico. De catatonia.

Fui convidado para estar na mesa “Além da crítica cultural”, que trataria do jornalismo musical (um subgênero do jornalismo cultural, subgênero por sua vez do Jornalismo com jotalhão), uma dessas instituições que estão em estado de coma no Brasil pós-golpe – ou nesse caso específico estaria, se não tivesse morrido em algum episódio de uma das várias temporadas passadas. (Eu sei, quem agoniza-mas-não-morre é a indústria jornalística, e não propriamente o jornalismo musical, o jornalismo cultural ou o Jornalismo com jotalhão. Mas, ah, esse papo é tão Ecad 1999, e não é que, transcorrida uma geração inteira da trombeteada ~morte da música~, o Ecad segue tão vivo – embora caindo aos pedaços – quanto a Globo, a Folha, a Veja, o Estadão?)

Na parte festivalesca da programação, guerrearam por foco, atenção e respeitabilidade nomes que fogem à equação rica-mas-decadente do homem-branco-heterossexual-anglo-saxão: os uruguaios Cuatro Pesos de Propina, os paulistanos periféricos EmicidaFióti Rico Dalasam, o combo mexicano-sorocabano-campinense-matogrossense Francisco el Hombre, o paraense Jaloo, a baiana Larissa Luz, o colombiano Masilva, o capixaba Silva. Na parte palestrística, nossa mesa de debate foi antecedida por outra, denominada “Música como agente de transformação e inclusão social”, destinada a prosear sobre igualdade de gênero, racismo, desigualdade social, homofobia etc.

Uma das palestrantes dessa mesa, Marta Carvalho, responsável pelo festival brasiliense Satélite 061, denunciou que, pós-golpe de Estado no Brasil, o governo do Distrito Federal (a cargo de um partido que leva o termo “socialista” na nomenclatura) suspendeu fomentos a festivais e eventos direcionados majoritariamente à expressão das ditas minorias. Essa é a ética do golpe, e, salvaguardadas as melhores intenções do CoMa, são os rapazes da banda brasiliense Scalene, de perfil global-masculino-branco-(aparentemente)heterossexual, que organizaram e levaram os prêmios de edital do governador “socialista” Rodrigo Rollemberg.

A propósito: são três os empreendedores que ergueram a CoMa. Tomás Bertoni (assim como seu irmão Gustavo Bertoni) é, além de integrante da roqueira Scalene, filho de Torquato Jardim (aquele jurista que em 31 de maio foi empossado ministro da Justiça do peemedebista Michel Temer, depois de ter chefiado, para o mesmo Temer, o Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle). Diego Marx é produtor da Scalene, integrante de outras bandas de rock e genro do senador também peemedebista Romero Jucá (aquele político que foi apanhado em grampo quando negociava, pré-golpe, “botar o Michel num grande acordo nacional” “com o Supremo, com tudo“). Completando o trio, André Noblat, também roqueiro na banda Trampa, é filho do jornalista da Globo Ricardo Noblat (aquele cronista político que após uma entrevista observou que o presidente postiço é “um senhor elegante“, e “a senhora dele, também“). Apadrinhada por Paulo Ricardo (intérprete desde 2002 do tema-chave do Big Brother Brasil), a Scalene tirou segundo lugar no reality show musical global  Superstar, em 2015., atrás da dupla baiana Lucas e Orelha.

No sábado, um jornalista fantasiado de Homem Invisível grava os shows do CoMa em Brasília para a Rede Globo.

No sábado 5, um jornalista fantasiado de Homem Invisível grava os shows do CoMa em Brasília para a Rede Globo.

Sobre a composição de custos da CoMa, os organizadores respondem à solicitação do repórter: “Captamos entre poder público e iniciativa privada R$ 1,34 milhão, e o evento custou R$ 1,8 milhão”.

Voltemos ao jornalismo musical. Com sete integrantes, a mesa sobre igualdade social reuniu uma representação simbólica de mulheres (quatro, uma delas transexual), negros (três: Marta, Rico Dalasam e a transexual brasiliense Rosa Luz) e gays (não me arrisco a cravar quantos). Em seguida, veio nossa mesa, a da crítica cultural. Éramos nove, entre nós duas mulheres, um gay declarado (eu), zero pretos, zero pretas.

O contraste gritante com a mesa anterior indica mais que detalhe, firula ou mimimi. A composição, muito mais fiel à tessitura do golpe e das redações do Partido da Imprensa Golpista (PIG) que à da sociedade brasileira real, explica em si o estado comatoso da indústria jornalística, seja ela musical, cultural ou geral com Jotalhão. Se algo está morrendo no jornalismo brasileiro, é a proximidade entre ele e a sociedade, a vida real, o chão, o gramado, o calor das ruas. Não à toa, alguém citou no mesmo debate que a faixa etária média atual dos leitores do jornal O Globo é de… 68 anos.

Mais grave que o descolamento entre o PIG e o país, as faixas etárias que ainda consomem eucalipto ou a problemática do “lugar de fala” é a relação direta entre esse distanciamento e o coma prolongado vivido pelo jornalismo cultural (e não só ele). Mesmo com todos os problemas colossais que se abatem sobre nós, o cinema brasileiro não para de produzir brilhantes cineastas mulheres, sob um substrato de discussão sobre representação e paridade feminina etc. A comunidade musical produz festas exclusivamente pretos, blocos de rua gays, festivais com 100% de mulheres na equipe técnica e, sobretudo, a mais vibrante, inteligente, engajada e politizada geração de artistas desde a tricotomia que repartiu os anos 1960 entre samba, tropicália e antitropicália e explodiu os anos 1970 em clube da esquina, black music, nação nordestina, samba-rock, secos & molhadas, Rita & Raul & Erasmo etc. etc. etc.

O jornalismo cultural (não só ele) que deveria dar conta de acompanhar e decifrar essa profunda transformação está comendo poeira, por mil razões, entre elas sua própria resistência em abdicar do racismo, da misoginia, da homofobia, do classismo e das mais variadas modalidades de golpismo que se entranham feito DNA à nossa genética. Vitaminado à inanição por versões ~ressignificadas~ de práticas milenares como compadrio, corporativismo, lobby, jabaculê, isolamento, discriminação, truculência, assédio, subserviência e autoritarismo, o jornalismo musical se posiciona como Carolina (mas não a de Jesus cantada magistralmente pela baiana Larissa Luz) na janela vendo a banda passar e não sabe o que dizer a respeito. Isso não é coma, isso é a personificação da morte por assassinato, chacina, massacre, genocídio, psicopatia fascista.

Se há um lado luminoso na desgraça (além do advento de uma geração formidável e talvez tão filhota da ditadura de 2016 quanto tropicalistas e seus inimigos o foram da ditadura de 1964), é que a guerra está às escâncaras, sendo travada ao ar livre e fora de (quase) todos os armários. Ocorre nos bastidores em CoMa, onde jornalistas e agentes produtores de festivais rasgavam coração por descobrir disparidades de gênero (etc.) nos minguados cachês oferecidos a mediadores e palestrantes. Não há possibilidade de mudez ou omissão quanto a isso, para um jornalismo (não apenas) cultural que se alongou na repulsa pelos hábitos escravagistas-com-glamour do sistema Fora do Eixo, já que os hábitos são radicalmente os mesmos. Não há hipótese de silêncio sobre “aparelhamento” via infraestrutura cultural e musical, e nesse quesito nos basta perguntar se a casa já não teria caído caso estivéssemos num festival de dinheiro público capitaneado por parentes do ministro da Justiça Aloízio Mercante, da senadora Gleisi Hoffman ou de algum medalhão do jornalismo ~petralha~ (existem? Luis Nassif?).

Bastidores à parte, a guerra ocorre também no alto do palco, no embate CoMatoso exemplar entre o rock’n’roll tributário de Legião Urbana Capital Inicial e o aplomb musical e comportamental da geração filhota dos paratropicalistas Ney Matogrosso e Elza Soares, composta com escândalo por Johnny Hooker e Larissa Luz, Rico Dalasam e Pabllo VittarAnitta Liniker, Francisco el Hombre y Cuatro Pesos de Propina etc. etc. etc. (É plausível gastar páginas de eucalipto teorizando sobre ditadura na Venezuela enquanto o Estado de exceção avança feito câncer de metástase aqui mesmo?) Até este momento, a extração branca-hétero-rica-masculina tem precisado dos dissidentes de toda natureza para se legitimar, inclusive (ou principalmente?) em termos mercadológicos, de vender até aquilo em que não se acredita porque há quem queira comprar, de (re)posicionamento de marcas, “branding”, “pitch”, “mentoring”, blábláblá. Onde a porca torce o rabo, as dissidentes sexuais, raciais, sociais etc. continuam a gritar em algazarra tudo aquilo que desesperou o fascismo a ponto de se apelar para a solução suicida de derrubar Dilma Rousseff, na tosca ilusão de que calaria tal sinfonia de vozes à base da força e da violência (não apenas) simbólica.

Demorou uma geração, mas os filhotes da ~morte da música~ são do balacobaco, para quem tiver ouvidos de escutar. Merecem produtores culturais, jornalistas, repórteres, críticos à altura. A guerra (também) cultural está desfraldada, e se não formos mais uma vez covardes e subservientes há de ser bonita a festa, pá.

P.S.:  Aceitei o convite da organização da CoMa para participar do debate sobre crítica cultural, aí inclusos os custos de viagem, hospedagem e alimentação (mas nenhum cachê). Vivo em regime de ~reforma trabalhista~ desde a era Lula, mas não há glamour festivalesco que faça sossegar meu coração. Ainda assim, apesar de montanhas de pesares, me recuso a acreditar na morte do jornalismo cultural, seja por susto, bala ou vício.

IMG_1298

Estados Unidos do Mato Grosso

$
0
0

Era uma vez o Mato Grosso, que a ditadura dos Estados Unidos do Brazil decidiu fatiar em duas metades, instituindo, em 1º de janeiro de 1979, o estado do Mato Grosso do Sul. Na parte sulista dos Matos Grossos desembarquei em 27 de julho de 2017, para participar como observador convidado do 18º Festival de Inverno de Bonito, evento multicultural sediado numa estância turística que conheço desde os anos 1990, um mar de água doce que jorra do Aquífero Guarany para a superfície da Terra, num pedaço de terra à parte do mar de gado e do mar de soja que é o Mato Grosso do Sul, que é o Mato Grosso do Norte dos indígenas do Parque Indígena do Xingu, que são os Matos Grossos todos.

IMG_4750

É árduo para um forasteiro desinformado decifrar o Mato Grosso do Sul, ainda mais se o forasteiro, como é meu caso, for um paranaense do norte, interiorano, que se converteu a fórceps em paulista metropolitano, em paulistano dito cosmopolita, em filhote desgarrado do prefeiturista João Doria Jr. do PSDB. Cumpre aqui lembrar que a província do Paraná foi instituída pelo imperador Dom Pedro II em 1853, como um abcesso de terra expulso do seio da província de São Paulo – poderia se chamar hoje em dia Província de São Paulo do Sul, presidida pelo governador-ditador Sergio Moro, também do PSDB em coligação com o (P)MDB tieteense do paulista do norte Michel Temer. Numa mesma natureza de fenômeno, em 1988 o pós-ditador acidental (?) José Sarney, do PMDB (ex e futuro MDB), separou Goiás em Goiás e Goiás do Norte, ou melhor, Tocantins, um estado hoje nortista que foi arrancado não apenas do corpo de Goiás como da região Centro-Oeste dos matos grossos todos, de cerrados, pantanais, aquíferos, parques indígenas, florestas e mares de soja e gado. A ruralista Kátia Abreu é goiana que virou tocantinense, tal qual a violeira Helena Meirelles e a atriz Aracy Balabanian são mato-grossenses que viraram do sul e o poeta Manoel de Barros é cuiabano do norte que viveu sempre no (Mato Grosso do) sul.

Logo comecei a me perguntar em que natureza de divisão eu estava penetrando, ao chegar ao MS convidado pelo Festival de Inverno de Bonito, na figura de Jerry Espíndola (um dos muitos filhos músicos da extraordinária família campo-grandense Espíndola), sob patrocínio do governo tucano sul-mato-grossense (e a um custo total de R$ 2,5 milhões, segundo os organizadores, divididos em R$ 2,2 milhões do governo estadual, R$ 150 mil em emendas parlamentares, R$ 100 mil da prefeitura também peessedebista de Bonito e R$ 50 mil da Fundação do Turismo do estado). Onde estava eu? Mato Grosso ou Mato Grosso do Sul? Direita ou esquerda? América ou América (apenas) do Sul? Sudeste ou Nordeste? Pátria Grande ou Pátria Pequena? Ocidente ou Oriente? Fascismo ou comunismo? Carnívoros ou vegetarianos? Gado ou soja? Norte ou sul? Guerra ou paz?

Como diria a compositora paraibana Roberta Miranda, talvez fosse melhor nem pensar, apenas sentir.

MST à margem da rodovia Campo Grande-Bonito

MST à margem da rodovia Campo Grande-Bonito

Os sentidos ficaram de fato aguçados, desde a visão de dois tamanduás-bandeira em pontos distintos do trajeto terrestre de 280 quilômetros entre a capital Campo Grande e Bonito, até o encontro institucional com Ney Matogrosso, outro sul-mato-grossense nascido apenas mato-grossense, em 1941, na pantaneira Bela Vista, próxima de Bonito e fronteiriça com o Paraguay.

Ney, cantor do brado seco & molhado “desperta, América do Sul!” (1975), se apresentaria como astro principal da praça da Liberdade na noite do sábado 29, num show 100% marcado e sem surpresas preparadas sob medida para a ocasião, por um cachê de R$ 118,5 mil. É difícil saber quantos sul-mato-grossenses (etc.) o assistiram na vila turística com rede hoteleira lotada (e repleta de gringos), mas a organização estima em 38 mil os espectadores dos quatro dias de festival (contra 23 mil do ano anterior), distribuídos em 211 atrações de várias áreas artísticas.

Na resistência em se afirmar sul-mato-grossense ou só mato-grossense (como, afinal de contas, delata o sobrenome-fantasia hiperfantástico), Ney parecia ostentar a divisão e o isolamento que separa os Matos Grossos do resto do Brasil, mesmo que parte substancial das divisas nacionais atuais sejam obtidas a partir dos mares de água doce, gado, soja e música sertaneja universitária. (A indústria de massa que sustenta essa última modalidade de riqueza se concentra fortemente em Campo Grande, segundo me contam, nos bastidores da produção do festival, os músicos e produtores culturais Jerry Espíndola e Rodrigo Teixeira. Luan Santana, por exemplo, é campo-grandense; João Bosco & Vinicius nasceram cada num Mato Grosso; Michel Teló é paranaense criado no MS).

A negação da raiz pode soar como teimosia de Matogrosso, mas a divisão e o separatismo guardam profundas raízes históricas. Houvesse o Paraguay vencido a guerra (1864-1870) que lhe levou o nome em desfavor da tríplice aliança formada por Argentina, Brasil e Uruguay, toda a região que envolve as águas de Bonito, as neymatogrossices de Bela Vista e os pântanos fronteiriços (com a Bolívia) de Corumbá não seriam Brasil, mas sim Paraguay.

Como cantou o campo-grandense Almir Sater (“lembrando o que não se diz”) na linda “Sonhos Guaranis” (1982), se os brasileiros tivéssemos perdido a sangrenta Guerra do Paraguai Ney Matogrosso não seria nosso, mas sim um rebelde cantor andrógino revolucionário subversivo paraguayo. De certa forma, a área de divisão em que se encontra este desinformado forasteiro paranaense sul-paulista é uma gigantesca zona de fronteira. Conflagrada ou pacata? Isolada ou universal? Brasil ou Paraguay? Portugal ou Espanha? Estados Unidos ou Brazil?

Melhor nem pensar, apenas sentir.

IMG_5144Divisões e fronteiras à parte, há uma mágica estranha no ar, desde o cortejo de abertura das festividades com um grupo de adolescentes bonitenses que dançam à moda indiana de Bollywood. A curadoria artística desta edição do evento optou por um lance ousado: na parte musical (Bonito nesses dias está povoada também por teatro, circo, cinema e dança), o Festival de Inverno se fechou quase exclusivamente no próprio umbigo sul-mato-grossense, num ato de autoelogio pelos 40 anos de criação do estado pós-guarany. Exceção solitária é Karol Conka, rapper funkeira paranaense (de Curitiba, atual capitania sul-paulista de Moro), hoje estrela global, que passa feito foguete fechando a noite pop de sexta-feira 28. Karol não fala com imprensa nem atende à imensa fila de fãs Brasil-profundenses carentes de um mínimo de atenção cultural.

Exceções bem delimitadas, a identidade aflora na programação de rua, uma identidade que nem é exclusivamente sul-mato-grossense ou mato-grossense. É, bem mais que isso, paraguaya, boliviana, pan-americana, fronteiriça, caipira, sertaneja, sertanejo-universitária, bollywoodiana, euro-indígena.

A surpresa, para este forasteiro, é mais vasta que essa provocada pelo apego identitário com as coisas do MS. Apesar de filiado a um partido que flerta com  a direita mais reacionária, quando não com o fascismo propriamente dito, e enroscado com delações carnívoras da Friboi/JBS, o governador tucano Reinaldo Azambuja deixa que as equipes artística, turística e de cidadania do festival evoluam com desenvoltura pelo território das identidades ditas minoritárias. Os sul-mato-grossenses orgulham-se de abrigar em seu seio a primeira secretaria estadual indígena das tristes terras do Pau Brasil. PSDB ou PT? Caubóis ou índios? Genocídio ou identidade?

As comunidades LGBT, feminina e indígena protagonizam lindamente grande parte do 18º Festival de Inverno de Bonito, seja em momentos festivos (como num multicolorido, multissexual e multiétnico desfile de modas bonitenses) ou em instantes graves de militância, como quando a jovem cantora e compositora campo-grandense de reggae Marina Peralta (cachê de R$ 20 mil) eleva-se altiva no palco para cantar e discursar de peito aberto e rasgado contra o feminicídio. “Hoje, irmãs presentes, o que eu tenho pra dizer é: cuidado. Encontre força em você. Conheça você mesma. E não vai se seu coração disser pra não ir. Cuidado”, diz, entre cânticos repetidos em coral pela plateia, do tipo “lugar de mulher/ é onde ela quiser” e “deus é mulher“.

IMG_9966Dividindo vizinhança com a tenda LGBT, a Tenda dos Saberes Indígenas dá guarida fraternal a guaranis-kaiowás, kinikinaus, ofaiés, guatós, atikuns, terenas, kadiwéus e guaranis-ñandevas. Ali, brilha o jornalista indígena Sidney Terena, que faz entrevistas e transmissões ao vivo por TV comunitária e recebe, na manhã do sábado, a visita solidária de um Ney Matogrosso que se move pela cidade à paisana, tão (declaradamente) preocupado com as identidades indígenas quanto (aparentemente) desapaixonado pelas digitais centro-ocidentais do Matogrosso, do Brasil e da América do Sul.

,

Embora mais voltada à chamada MPB de extração (sul)mato-grossense, a curadoria opta por não discriminar o sertanejo universitário. Formada por irmãos nascidos paranaenses em Catanduva e criados sul-mato-grossenses fronteiriços com o Paraguay em Ponta Porã, a dupla Jads & Jadson fecha triunfalmente a primeira noite, misturando sertanejo urbano, caipirice pantaneira e rock’n’roll paulista e brasiliense, sob cachê de R$ 170 mil.

IMG_3739

(Sim, a cultura sul-mato-grossense existe e viceja para além dos modismos de massa, mesmo sob brutal ignorância dos Estados Unidos do Brazil Litorâneo. Além de músico e produtor, Rodrigo Teixeira é jornalista e autor dos belos livros históricos Os Pioneiros – A Origem da Música Sertaneja de Mato Grosso do Sul, de 2010, e Prata da Casa – Um Marco da Música Sul-Mato-Grossense, de 2016. Em barraca montada ao lado de um dos palcos na praça da Liberdade, o pesquisador Carlos Luz exibe com orgulho uma formidável coleção de discos sul-mato-grossenses em vinil.)

A memória transborda em Bonito, e rapidamente se percebe que os pós-sertanejos pop-roqueiros Jads & Jadson configuram menos regra que exceção. O orgulho sul-mato-grossense aflora em apresentações delicadas, de inspiração tradicional-emepebista, como a do cantor e compositor (e ator global) Gabriel Sater (cachê de R$ 20 mil). Filho de Almir, ele nasceu paulistano, mas foi criado sul-mato-grossense e ostenta identidade musical fortemente pantaneira.

Numa espécie de duelo entre irmãos-em-música, o multiinstrumentista Marcelo Loureiro (R$ 20 mil) sucede Gabriel e fecha a programação da edição 2017 com uma apresentação de final de domingo esvaziada, mas espetacular, fundada nos saberes modernizados da viola caipira e da harpa paraguaia. Nascido carioca, mas filho de sul-mato-grossenses de Guia Lopes da Laguna e de Caracol e neto de paraguayos e argentinos, Marcelo cresceu no interior do MS e aqui recolheu o amor devotado por viola, violão e harpa.

Tal qual fariam um Luiz Gonzaga e um Renato Borghetti na sanfona, ou um Raphael Rabello e um Yamandú Costa ao violão, Marcelo povoa de virtuosismo e nobreza seus já nobres instrumentos e musicalidades de eleição. A influência indígena na harpa europeia é o grande mistério, ele afirma: “Quando chega na América do Sul, com a influência indígena, aquela coisa do povo, a coisa começa a mudar. Aí tem algo diferente”.

Na fila do gargarejo, este observador desinformado e emburrecido pelos preconceitos da vida lembra-se de quando, criança, no colo dos pais, reclamava de desgosto pela “música portuguesa” (querendo me referir aos sons àquela altura desagradáveis a meus ouvidos, das harpas paraguaias paranaenses de Chitãozinho & outros Xororós). Marcelo confirma a impressão ao mencionar a influência do paraguayo Luis Bordón, intérprete de temas natalinos instrumentais cerzidos à base de harpa, mais onipresentes que a baiana Simone nos finais de ano das décadas de 1970 e 1980. Ao mesmo tempo, o artista contrapõe a lembrança da presença da harpa paraguaia na gravação de Almir Sater  do “Trem do Pantanal” (1982), dos cariocas tornados sul-mato-grossenses Paulo Simões Geraldo Roca.

“Este é o melhor caminho/ pra quem é, como eu,/ mais um fugitivo da guerra”, canta o mitológico “Trem do Pantanal”. Caipira ou universal? Erudito ou brega? Europeu ou americano? Uma conversa com Loureiro deslinda um assombroso universo subterrâneo (qual o Aquífero Guarany), profundo, fronteiriço, paraguaybrasileiramente pan-americano.

Os filhotes Gabriel e Marcelo haviam sido representados antes pelo suprassumo de identidade histórica chamado Dino Rocha, veterano sanfoneiro interiorano de Juti, rei do chamamé, que na abertura do festival explicou, traduziu e decifrou toda e qualquer divisão, toda e qualquer guerra de fronteira: à sua esquerda, na banda, todos são paraguayos (harpista incluído); à sua direita, todos são brasileiros. Do lado de cá do muro que separou o Brasil da América, não somos todos nós que assimilamos tal musicalidade – alguns de nós só a assimilam quando traduzida ao idioma e à ideologia sertanejo-universitária, alguns menos ainda nesse caso.

Em Bonito, essa natureza de embate vem à flor da pele no show conjunto das irmãs Tetê Espíndola e Alzira E (cachê de R$ 30 mil), campo-grandenses nascidas respectivamente em 1954 e 1957 que, migrantes, vieram a São Paulo constituir, com o paranaense de Londrina Arrigo Barnabé e o paulista de Tietê (com raízes paranaenses em Arapongas) Itamar Assumpção, o movimento cosmopolita, ~maldito~, excêntrico, urbaníssimo que veio a se denominar vanguarda paulista (ou paulistana). É desconcertante o túnel sub-aquífero que liga pântanos, matos grossos e vilas velhas à província travestida de megalópole SP.

Alzira e Tetê têm trabalhado sempre na interface entre a vanguarda e a origem. Alzira, apesar de iniciada na carreira discográfica em 1983 com títulos caboclos como “Terra Boa” (de Almir Sater e Paulo Simões) e “Nossa Senhora do Pantanal”, aproximou-se progressivamente do experimentalismo urbano, em parcerias com Itamar, a paranaense Alice Ruiz, a mato-grossense Lucina, o paulistano arrudA, a banda pós-afrobeat paulistana Bixiga 70 (no álbum recém-lançado Corte).

Tetê também oscilou dialeticamente entre os dois extremos do pêndulo, entre temas rurais-aquáticos-errantes do irmão Geraldo Espíndola (saiba mais sobre o autor das obras-primas “Cunhataiporã”, “Vida Cigana”, 1980, e “Deixei Meu Matão”, 1986, na entrevista abaixo), sonoridades desafiadoras de vanguarda paulista (“Londrina”, 1981, de Arrigo), experimentalismo passarinheiro (os álbuns Pássaros na Garganta, de 1982, Gaiola, 1986 e Birds, de 1991), vitória pop passageira em festival da Globo (“Escrito nas Estrelas”, 1985, de Carlos Rennó Arnaldo Black), até o encontro musical com o alagoano Hermeto Pascoal em Asas do Etéreo (2014).

Sem jamais abdicar da identidade pantaneira, ambas se uniram em 1998 para o projeto Anahí, um disco pós-caipira, pós-sertanejo, pós-universitário (mas pré-sertanejo universitário) de modernização respeitosa do cancioneiro de matas, águas, cerrados e sertões, entre clássicos antes celebrizados pela dupla paulista Cascatinha & Inhana (as brasiguayas “Índia”, “Meu Primeiro Amor – Lejania” e “Anahí – Leyenda de la Flor del Ceibo”), pela fluminense Angela Maria (“Garota Solitária”) & pelo gaúcho Nelson Gonçalves (“Mágoas de Caboclo”). A apresentação no Festival de Bonito se baseia nesse trabalho, com direito a aparições especiais do espetacular e quase anônimo álbum Água dos Matos (2015, dividido por ambas com Lucina e Jerry Espíndola e resultante de uma expedição pantaneira pelo leito do rio Paraguai).

Pela própria natureza, está tudo armado para o grande encontro das irmãs Alzira & Tetê com as irmãs decanas Beth & Betinha, filhas de uruguaio criadas em Ponta Porã, rainhas pré-sertanejas do chamamé que ficaram alcunhadas “princesinhas da fronteira”. Hoje octogenárias, Beth e Betinha são as homenageadas da edição sul-mato-grossense do festival sul-mato-grossense, e surgem esfuziantes de alegria no palco de Tetê e Alzira para cantar “Boneca Cobiçada” (sucesso de 1956 na voz da dupla paulisto-mineira Palmeira & Biá) e mais um punhado de joias fronteiriças.

Das coxias, a apresentadora (e cantora e compositora paulistana e filha de Itamar) Anelis Assumpção assiste às lágrimas à pororoca musical que desagua sobre nós. O encontro quádruplo é de fato emocionante, mas oscila entre a harmonia e o choque cultural, como se o vanguardismo das Espíndola se assustasse diante do espelho do tradicionalismo das Beths: pura antropofagia hispano-indígena-portuguesa. Os estados d’alma se reconfirmam desunidos como dois estados que um dia foram um só, como dois países que em tempos imemoriais foram um continente. Tradição ou vanguarda? Urbanas ou florestais? Concreto armado ou natureza em flor? Itamar ou Inhana? Mato Grosso ou Mato Grosso do Sul? Mato Grosso ou Paraguay? Brasil ou América Hispânica? Estados Unidos do Brazil ou Brasil sob golpe de Estado?

A sensação de desarmonia harmônica deste forasteiro se consolida quando Jerry, o Espíndola caçula, brincalhão, puxa um senhor que passa pelo calçadão para apresentá-lo ao repórter desavisado. Trata-se de David Cardoso, mito da pornochanchada nacional, símbolo sexual da minha adolescência paranaense, pária do cinema brasileiro, filhote artístico antiglauberiano do paulistano acaipirado Mazzaropi, brasiguayo ruralista e ecologista, ícone da Boca do Lixo paulistana que nasceu no (e retornou ao) interior sul-mato-grossense, em Maracaju.

Conversando caoticamente com David, concluo além de tudo que o Aquífero Guarany legou ao Brasil dois de seus maiores símbolos sexuais masculinos, um mais dedicado à heterossexualidade (ele, David), outro, à antinormatividade (Ney Matogrosso). Os mistérios, que queriam se dissolver, se retransformam e se consolidam nos mais puros… mistérios. Hétero ou gay? Homem ou mulher? Índia ou branco? Africana ou europeu? Cidade ou mato grosso? Ruralismo ou ecologia? Eucalipto ou alface? Ditadura ou democracia? Casca ou seiva? Identidade ou auto-esquecimento?

Somos todos um só organismo? Ou seremos para sempre um exército de incompatibilidades mutuamente autodestrutivas?

(O jornalista viajou a convite da organização do 18º Festival de Inverno de Bonito, que cobriu despesas de transporte, hospedagem e alimentação.)

A refavela desvenda 2017

$
0
0

Refavela 40, Gilberto Gil

“O filho perguntou pro pai/ onde é que tá o meu avô/ o meu avô onde é que tá/ o pai perguntou pro avô/ onde é que tá meu bisavô/ meu bisavô onde é que tá/ avô perguntou bisavô/ onde é que tá tataravô/ tataravô onde é que tá.” Por um desses lapsos no espaço-tempo, as perguntas sem resposta de “Babá Alapalá” (1977) fazem eco no aqui-e-agora do show coletivo Refavela 40, que ficou em cartaz nos Sescs Pinheiros e Itaquera de São Paulo, entre 7 e 10 de setembro de 2017.

Gilberto Gil, o autor principal da quarentona Refavela, entra no palco já na reta final do espetáculo. À sua esquerda tem a filha Nara Gil e a nora Ana Claudia Lomelino, backing vocals do combo, e o pequenino Dom Gil, seu neto, participação especialíssima durante todo o show, que vovô trolla vezes sucessivas na voz de um herói-fantasma-preto-velho capaz de fazer o garotinho correr assustado (e brincalhão) para as coxias, para voltar segundos depois. Atrás de Gil está Bem Gil, seu filho e pai de Dom. Ao redor se dispõem outros filhos da grande família MPB, como Maíra Freitas (vocalista e pianista, filha de Martinho da Vila), Moreno Veloso (vocalista, filho de Caetano), Mateus Aleluia (trompetista, filho do homônimo integrante do mítico grupo de candomblé Os Tincoãs), Domenico Lancellotti (baterista, filho do compositor de sambas e romantismos Ivor Lancellotti), Céu (vocalista, filha de Edgard B. Poças, maestro e versionista de canções infantis para A Turma do Balão Mágico nos anos 1980).

Gil canta secundado pelo filho Bem, diretor musical de "Refavela 40" - foto divulgação/Alfamor

Gil canta secundado pelo filho Bem, diretor musical de “Refavela 40″ – fotos divulgação/Alfamor

Juntos, tataravô, bisavô, avô, pai, filho e neto (além das possíveis correspondentes femininas) ligam o ritual e aniversariam Refavela como uma utopia, em parte realizada, de reencontro num só ponto de luz da música do mundo, sobretudo do mundo negro. “Aqui e Agora”, reinterpretada com ternura por Moreno, adquire conotações subterrâneas, silenciosas, mas talvez ainda mais políticas que as de 1977, quando Gil, egresso de temporadas na cadeia em 1968 (por afronta à ditadura civil-militar) e 1976 (por uso de maconha), contava cantar que “o melhor lugar do mundo é aqui e agora” inspirado pela perspectiva de um homem (preto?) aprisionado. É possível cantar que o melhor lugar do mundo é aqui e agora no Brasil que corteja o fascismo em 2017? Seja possível ou impossível, a renascença de “Aqui e Agora” e da Refavela religa sentidos no lapso de tempo entre os estados de exceção e as escravidões de 1964-68 e 2016-17. Tataravô, bisavô, avô e pai souberam o que é a privação de liberdade. Nós que hoje aqui estamos também sabemos, ainda que finjamos que não.

O mundo negro é revolvido com brilho pela superbanda composta por gente variada de menos de 7 a mais de 75 anos de idade. A utopia daquele Gil, que se consolidou de lá para cá e faz refavela na música eletrônica mundial de periferia dos tempos de agora (reggaeton, tecnobrega, funk, kuduro etc.), é o “povo chocolate e mel”, aqui no Brasil africano e indígena, de que falava a “Refavela” de 1977. Ao redor, há gente de todas as tonalidades de pele e há o embranquecimento da família Gil (senão o preteamento dos colonizadores europeus importo pelo clã baiano de que Gil hoje é buda caymmiano). “Ninguém sabe se ele é branco, se é mulato ou negro”, cantarola a certa altura Moreno, em citação ao “Xamego” (1958) do cigano pardo Luiz Gonzaga.

Com o sangue de samba rural de Martinho que lhe corre pelas artérias, Maíra canta o umbigo de Refavela chamado “Samba do Avião” (1962). Rejeitado à época pela crítica sempre refratária às antenas do tempo, o arranjo à la Banda Black Rio de Gil revestiu era central por promover um desembranquecimento do autor Tom Jobim e da verve carioca da bossa nova. O funk de James Brown, o tribalismo e o timbalismo da África negra e o reggae jamaicano desembarcavam com Gil no aeroporto marítimo do Galeão, pela via da dupla provocação de universalizar o nacionalismo do samba e empretecer o maestro soberano Antônio Brasileiro e seus filhos, futuros avós dos filhos de Carlinhos Brown.

Como em 1977, Refavela ainda explode e se estilhaça em direções infinitas, na pulsação da diáspora humana (e africana sobretudo) que “Exodus” (1977), do repertório do jamaicano Bob Marley, representa à risca na Refavela 40Refavela era e é a África de Fela Kuti King Sunny Adé (com quem Gil se reuniu na visita musical à Nigéria que originou o disco de 40 anos atrás), como era e é a Bahia negra dos afoxés Filhos de Gandhy (presente com “Patuscada de Gandhi”, a canção com que Papai Ojô assusta o netinho Dom) e Ilê Aiyê (o clássico “Que Bloco É Esse?”, com que Paulinho Camafeu mandava o branco tomar banho de piche para adquirir uma sombra de dignidade negra, e que Gil rebatizou “Ilê Ayê”). Refavela era e é funk norte-americano de James Brown, de George Clinton e do menino eterno Michael Jackson, como era e é reggae caribenho de Bob Marley, como era e é world music de Fela aos jovens da Abayomy Afrobeat Orquestra e do Tono (a banda pós-tropicalista de Bem) inseridos no supergrupo. O percussionista Thomas Harres, da Abayomy, traz ao palco o majestoso balafon, marimba africana que Gil apresentou ao Brasil em “Balafon”, na Refavela de 40 anos atrás.

A filha Nara, o neto Tom, a nora Ana - foto divulgação/Alfamor

A filha Nara, o neto Dom, a nora Ana

O repertório ampliado para compor um show inteiro é minucioso e privilegia o ano e o ideário odara de 1977. “Sarará Miolo”, lançada no disco Os Meus Amigos São um Barato, da bossa-novista Nara Leão, fala da mania de branco de ter cabelo liso já tendo cabelo loiro (“cabelo duro é preciso/ que é pra ser você crioulo”) – é de Refavela mesmo sem ser, e aqui em 2017 vem ressaltar como os cabelos afro estavam onipresentes na mente do Gil de 1977, desde os “cabelos da eternidade” de que fala “Era Nova” até a tensão subjacente entre as trancinhas afrobaianas, o black power carioca de Tim MaiaWilson Simonal e equivalentes, e o pretume bem-comportado demais (na opinião de Gil) dos sambistas cariocas, pai Martinho incluído.

Resta ausente do tributo o híbrido samba-soul Jorge Ben (Jor), propulsor indireto da Refavela tanto por conta do disco em dupla com Gil Ogum-Xangô (1975) quanto pelo individual África Brasil (1976). Se o samba-roqueiro Jorge queria ver o que ia acontecer quando Zumbi chegasse de volta em 1976, Gilberto fazia Zumbi dos Palmares acontecer em 1977 na medida do preto pobre que saltava do seu barraco para um bloco do BNH, Minha Casa Minha Vida em versão civil-militar entre-golpes. Ao cantar “Refavela” na sexta-feira 8, Gil cita como inspiração não só a Nigéria, mas também a carioca norte-americanizada Vila Kennedy, construída em 1964 pelo governador golpista Carlos Lacerda, pai disto tudo que está aqui.

Do mundo mestiço brotam as presenças simbólicas de Caetano (“Two Naira Fifty Kobo”, do disco Bicho, também resultante da excursão brasileira à Nigéria), Ney Matogrosso (o primeiro a gravar “Gaivota”, que reaparece na voz de Céu) e Dori Caymmi (filho miscigenado do paxá preto cigano indígena Dorival e arranjador da trilha sonora da série televisiva Sítio do Picapau Amarelo).

Foi Dori quem convidou Gil para compor e cantar aquela que viria se tornar a música-tema da série infantil da Globo em 1977 e encerra Refavela 40 como talvez o único hit pop de massa daquela safra nigérrima de 1977. A Refavela é mitológica a ponto de motivar o livro analítico de Maurício Barros de Castro na série O Livro do Disco (da editora Cobogó), vendido às dúzias no tabuleiro pop da Refavela 40, mas até hoje não foi assimilada pela oficialidade insistente na fórmula-fantasia do “não somos racistas”. Essa é a tensão que transforma em achado feroz a iniciativa de recuperar Refavela aos 40.

De resto, discursos supremacistas à parte, Tia Nastácia e a Taubaté do matuto paulista embranquecido Monteiro Lobato se incorporam à mitologia de diáspora negra da Refavela, e Dom Gil pula feito cabrito na despedida com o “Sítio do Picapau Amarelo”. O tempo-rei abre uma fresta no sofrimento do aqui-e-agora e a refavela desfila mais moça do que nunca, alegoria, elegia, alegria e dor.

Joyce, musa de si mesma

$
0
0
Aos 70 anos, Joyce reproduz a imagem de capa do álbum der estréia, quando tinha 20 - foto Leo Aversa/divulgação

Aos 70 anos, Joyce reproduz a imagem de capa do álbum de estréia, quando tinha 20 – foto Leo Aversa/divulgação

Joyce Moreno nasceu de “produção independente” em 1948, 40 anos antes de a conservadora sociedade brasileira considerar aceitável um dado como esse para uma mulher. Aos 20, no ano do AI-5, estreou em LP solo de compositora que hoje seria assimilado sem grandes traumas como “feminista” (palavra rara no Brasil de 1968). Ali, a jovem educada em colégios católicos chamava homem de “meu homem” e “meu moreno”, dizia que não desejava sustentar marido, seduzia quem quisesse com a liberdade de que o país institucional não desfrutava.

A compositora carioca, hoje com 70 anos, acaba de regravar na íntegra, pelo selo nacional Biscoito Fino, aquele simplesmente Joyce de 1968, agora sob o título 50. É um comentário de musa de si mesma, que se homenageia em vez de esperar que alguém mais o faça, mas é muito mais que apenas isso. O violão, o canto, as letras e a fala de Joyce Moreno comunicam muito a um país ainda golpeado pela destituição de sua primeira presidenta da República. Ao repertório juvenil, a artista acrescenta duas canções inéditas que comentam em profundidade lancinante esses 50 anos de túnel dos tempos. São elas “Com o Tempo”, parceria 100% feminina com Zélia Duncan, em que afirma que “com o tempo/ fui ficando mais moça/ mais olhos, menos onça”, e “A Velha Maluca”, na qual reivindica, sozinha, um próximo passo de emancipação da condição feminina, o das idades mais avançadas. “No dia em que ficou velha, a moça ficou contente/ pra ela era indiferente/ foi bom pra se libertar/ da escravidão da beleza, do empenho em viver bonita e ser/ a velha esquisita, maluca de arrepiar”, canta em “A Velha Maluca”.

“Tem hora que acho que ficar velha é uma coisa sensacional, porque começam as pessoas a valorizar um monte de coisa que você fez lá atrás e ninguém dava a mínima”, avalia a senhora auto-musa. “As pessoas falam ‘Joyce é uma compositora do nível de um fulano de tal’, e aí falam dos grandes nomes da MPB. É engraçado isso, porque, né?, durante esses anos todos nem os meus colegas se davam conta disso. Porque eu não fazia concorrência com ninguém, porque eu era uma menina no mundo dos meninos, brincando no playground dos meninos.”

Acompanhe abaixo, em vídeo e/ou em transcrição de texto, a íntegra da entrevista da compositora que desbrava há meio século um ambiente masculinamente inóspito, concedida em 7 de julho de 2018 para fundamentar reportagem da edição 1.016 da revista CartaCapital. Joyce falou em lugar pomposo, o centro do palco do Sesc Belenzinho, em São Paulo, onde poucas horas depois faria o primeiro show paulistano de 50. Ensaiando no mesmo território e convidado a participar, o companheiro e parceiro de mais de quatro décadas Tutty Moreno, baterista mundialmente consagrado, preferiu se esgueirar para os bastidores e deixar a companheira ocupando com exclusividade o “lugar de fala” que há 50 anos não cessa de gentilmente reivindicar.

(No vídeo, foram perdidos os primeiros minutos da entrevista – a janela está reproduzida abaixo, no ponto da conversa onde começa a gravação.)

 

Pedro Alexandre Sanches: Depois de 50 anos você regrava o primeiro disco da sua carreira. Por que lembrar de quando tinha 20 anos?

"Joyce", de 1968

“Joyce”, de 1968

Joyce Moreno: Porque eu gosto desse repertório e queria fazer, primeiro, como uma cantora melhor, e segundo, porque essa cantora melhor tem ideias que aquela de 20 anos ainda não sabia que ia ter e nem tinha como realizar. Era um disco de iniciante, uma outra situação. Não tinha o poder que hoje tem, pra colocar suas ideias e tudo mais.

PAS: O disco começava e agora começa com “Não Muda Não”, uma canção sua, em que você está falando com um namorado, dizendo “não quero arranjar marido”, “não quero te mudar”. Que significavam esses versos há 50 anos e que significam hoje?

JM: Na verdade eu fiz até antes, fiz com 18 anos. Eu vinha do colégio católico e estudava na PUC. Saí de colégio de freira pra universidade católica também, onde as meninas da minha geração, as garotas de Ipanema, eram preparadas pra ser exatamente essa coisinha, essa coisa toda minha que ninguém mais pode ser, pra casar e ter aquela função na vida. E eu já sabia que não era isso que eu queria. Até posso ter passado por isso em alguns momentos, mas não era realmente o que eu queria fazer quando eu tinha 18 anos. Essa música não é pra nenhum namorado em especial, mas é uma declaração de princípios de uma menina bem marrenta (ri).

PAS: Uma declaração que não era tão em voga.

JM: Nem um pouco.

PAS: E hoje é.

JM: É, quer dizer, 50 anos depois, é aquela famosa fórmula matemática, como queríamos demonstrar.

Joyce Moreno, "50", 2018

Joyce Moreno, “50”, 2018

PAS: Você sente que demorou 50 anos, ou quase isso, pra conseguir demonstrar?

JM: Acho que demorou 50, sim, porque aquela onda feminista de 1979, 1980 ainda era uma outra coisa. Não era isto ainda que é hoje. Tem essa palavra que eu acho horrorosa, empoderamento – acho muito feia, porque é um anglicismo desnecessário, mas o sentido dela é muito legal, que é o sentido de você tomar a rédea da sua vida. É uma coisa simples assim.

PAS: E ali você assinava como apenas Joyce, e todas eram Joyce, Joanna, Simone, Marina

Regina Duarte comandou o elenco musical feminino do especial "Mulher 80", fundado na trilha sonora do seriado "Malu Mulher" (1979), pautado pelo levante feminista de então, a bordo da oficialização do divórcio no Brasil; Joyce participava como compositora, assinando "Feminina", interpretada pelo Quarteto em Cy

Regina Duarte comandou o elenco musical feminino do especial “Mulher 80″, fundado na trilha sonora do seriado “Malu Mulher” (1979), pautado pelo levante feminista de então, a bordo da oficialização do divórcio no Brasil; Joyce participava como compositora, assinando “Feminina”, interpretada pelo Quarteto em Cy; na foto estão Elis Regina, Simone, Gal Costa, Maria Bethânia, Rita Lee, Fafá de Belém, Regina Duarte, Marina Lima, Zezé Motta, Joanna e o Quarteto em Cy

JM: Mas isso já em 1979. Eu estreei como Joyce em 1968, aquele ano que não acaba nunca.

PAS: Acho curioso que as mulheres não tinham sobrenome na música popular brasileira.

JM: Não tinham sobrenome. Isso realmente, tirando um ou outro homem – Lenine, Djavan, eles também não têm sobrenome.

PAS: E Gal Costa tinha, mas a maioria das mulheres, não.

JM: Acho que no meu caso é como o de Lenine e Djavan, nome raro. Joanna existe, Simone existe. Joyce, naquela época, não tinha ninguém. Agora tem um monte. Eu fiz o teste do IBGE pra ver, descobri “Clareana” acontece em 1980 e em 1981 tem um boom de pessoas chamadas Joyce acontecendo no Brasil. É engraçado isso.

PAS: Ali não existia Google. Quando passa a existir, todas as Joyces viram uma só.

JM: Pois é, exatamente.

PAS: Se escreve Joyce aparece o James Joyce.

JM: É, ele é o mais famoso de todos, né?

PAS: É uma pergunta boba essa do nome sem sobrenome, mas estou querendo avizinhar essas questões da feminilidade mesmo, e de ter ou não ter marido. As mulheres tomavam e ainda tomam o sobrenome do marido. Você é casada com Tutty Moreno.

JM: Mas olha, eu tomei o sobrenome do marido por vontade própria mesmo, foi uma escolha minha, depois de 24 anos de convivência.

PAS: E se fosse o seu mesmo, como seria?

JM: Joyce Silveira Palhano de Jesus. É um nome muito grande, aquela tradição portuguesa daqueles nomes enormes, sendo que não era nem meu sobrenome, porque o meu nome verdadeiro era para ser outro. Porque eu sou filha de produção independente. Meu pai de verdade era dinamarquês. Seria um outro sobrenome se houvesse divórcio na época que minha mãe encarou a barra toda que encarou para me ter sozinha depois de um relacionamento que durou relativamente pouco. Então, como não havia divórcio no Brasil em 1948, ela assumiu, de comum acordo com o ex-marido, o primeiro marido, que eu seria registrada como filha dele. Ele mesmo se ofereceu pra isso, porque havia toda uma situação, de ter deixado ela com dois filhos, ter ido embora com outra mulher. Tinha toda uma situação meio de culpa, e aí fiquei com esse sobrenome. Então sobrenome pra mim realmente não queria dizer nada, absolutamente nada.

PAS: Esse era até um motivo pra ser só Joyce?

JM: É. Aí veio o Google. E veio um monte de Joyce no mundo. E achei que seria legal aceitar o pedido que meu companheiro já vinha fazendo havia muitos anos, “vamos casar, vamos assinar o contrato”. Aí finalmente a gente resolveu fazer isso, depois de 24 anos.

PAS: Só pra ver se entendi, no seu batismo você está registrada com o sobrenome do ex-marido da sua mãe?

JM: Sim, que é meu pai oficialmente e eu nem conheci pessoalmente.

PAS: E é de Jesus?

JM: É, Palhano de Jesus é o sobrenome dele, e Silveira o da minha mãe. Depois de casar fiquei Joyce Silveira Moreno.

PAS: Você viraria Joyce de Jesus, possivelmente uma cantora de candomblé…

JM: Ou evangélica, quem sabe (risos).

PAS: nhamos a Clementina de Jesus.

JM: Podia ser uma das duas coisas.

Em "Encontro Marcado", de 1969, as asas da compositora começavam a ser cortadas: só quatro das 11 faixas tinham a assinatura de Joyce

Em “Encontro Marcado”, de 1969, as asas da compositora começavam a ser cortadas: só quatro das 11 faixas tinham a assinatura de Joyce

PAS: Joyce, você fez esse disco autoral de 1968, depois fez mais um e depois passou uma década até voltar a gravar canções suas. No meio tempo teve Passarinho Urbano (1976), que não era autoral.

JM: Esse é o disco do meu retorno mesmo como artista ao mundo da música, trabalhando com Vinicius de Moraes na Itália. Sergio Bardotti era o produtor que fazia os discos de Vinicius e Toquinho na Itália. Ele me conheceu, achou legal e propôs fazer. Gravamos, sei lá, em um dia ou dois, esse disco que é voz e violão.

Gravado na Itália, "Passarinho Urbano" (1976) reunia canções de autores (homens) sob a mira da censura ditatorial, como Aldir Blanc, Caetano Veloso, Carlos Lyra, Chico Buarque, Edu Lobo, João Bosco, Maurício Tapajós, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Paulo César Pinheiro, Ruy Guerra, Sidney Miller, Zé Keti...

Gravado na Itália, “Passarinho Urbano” (1976) reunia canções de autores (homens) sob a mira da censura ditatorial, como Aldir Blanc, Caetano Veloso, Carlos Lyra, Chico Buarque, Edu Lobo, João Bosco, Maurício Tapajós, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Paulo César Pinheiro, Ruy Guerra, Sidney Miller, Zé Keti…

PAS: Joyce intérprete.

JM: É, eu escolhi… Estava numa seca de composição no momento.

PAS: Estava numa seca? Não estava compondo?

JM: Sim, e optei por fazer as músicas dos colegas que estavam sendo censurados. Passarinho Urbano é um disco muito de compositores que estavam sendo censurados no Brasil naquele ano de 1975, que foi quando gravei o disco.

PAS: Eu queria entender como e por que a menina de 20 tem uma safra inicial de composições e depois some por dez anos. É como se a compositora ficasse recolhida?

JM: Não chega a dez anos, né? Foi uma fase. Tive as minhas filhas, fiquei um tempo afastada, foi um período meio de seca musical, nessa parte da composição. Mas sempre foi o que eu queria realmente fazer. Aí eu volto em 1975, 1976, começa de novo uma safra boa de composições, e algumas estão naquele disco que você gostou, Visions of Dawn, com Naná Vasconcelos e Mauricio Maestro. E daí não para mais. Daí pra frente vai, embala.

O disco autoral gravado em  1976 foi arquivado e só veio à tona em 2009, sob o nome "Visions of Dawn", por iniciativa do selo britânico FarOut

O disco autoral gravado em 1976 foi arquivado e só veio à tona em 2009, sob o nome “Visions of Dawn”, por iniciativa do selo britânico FarOut

PAS: Ou seja, houve um disco autoral em 1976 que não foi lançado.

JM: Que só foi lançado 30 anos depois. E depois tem Natureza, que não foi lançado nunca, que é o disco com Claus Ogerman, também autoral, feito em Nova York em 1977, com orquestra, com tudo.

PAS: Cadê?

JM: Ele liberou duas faixas pra compilações, e só tem isso. Eu tenho uma cópia muito ruim de uma fita cassete da época, imagina. Mas estão lá os arranjos de orquestra dele, tá tudo lá.

PAS: Na verdade não é que você não compôs durante dez anos, você só não foi lançada.

JM: É, fui relançada em 1980 com o Feminina. Tem muita gente que acha que Feminina é o meu primeiro disco. Mas teve todo esse pré-eu.

Já sob o sucesso de "Clareana" no festival global MPB 80, "Feminina" (1980) marcou a volta da compositora, com "Mistérios", "Feminina", "Essa Mulher",  "Da Cor Brasileira", "Revendo Amigos", "Banana", "Aldeia de Ogum"...

Já sob o sucesso de “Clareana” no festival global MPB 80, “Feminina” (1980) marcou a volta da compositora, com “Mistérios”, “Feminina”, “Essa Mulher”, “Da Cor Brasileira”, “Revendo Amigos”, “Banana”, “Aldeia de Ogum”…

PAS: Por que esses dois momentos ficaram perdidos?

JM: Não sei, por falta de oportunidade mesmo. No caso do Claus Ogerman, ele não quis. Muitas gravadoras de vários países tentaram comprar esse tape dele, inclusive porque tinha, além dos arranjos dele, orquestra, músicos importantíssimos, muitos já falecidos, como Michael Brecker, Naná Vasconcelos, Joe Farrell, um monte de músico bacana. Nunca foi lançado porque ele não quis. Agora ele também morreu, e a família dissepra última pessoa que tentou, de um selo da Inglaterra, que não sabe onde está esse tape.

PAS: Você também não sabe?

JM: Eu não sei. Eu é que não sei mesmo, não sei de nada. Se tem alguém que não saiba, sou eu.

PAS: Esse disco tinha músicas suas que provavelmente ficaram conhecidas depois?

JM: “Feminina”, “Mistérios” (que apareceria em 1978, em Clube da Esquina 2, na voz de Milton Nascimento)…

PAS: Nada menos que essas músicas…

JM: Algumas coisas assim.

PAS: Seria um lançamento internacional seu?

JM: A ideia era essa.

PAS: Que viria a acontecer décadas depois, espontaneamente.

JM: Pois é. Quer dizer, o que tem que acontecer acontece, né? Mas os caminhos é que ficam meio tortuosos às vezes.

PAS: Você escreve no encarte de 50 que um crítico da época disse que “Superego” era uma música tão boa que não parecia ter sido feita por uma mulher.

JM: É, e outro dia um pesquisador amigo encontrou esse texto, acho que no Diário de Notícias, um desses da época.

PAS: Não vamos dar nome ao boi?

JM: Eu não sei o nome do cara, mas sei que tá lá. Recebi esse recorte. Até com o nome do cara, mas eu esqueci. Dizia isso, “grande música, difícil de acreditar que tenha sido feita por mulher”.

PAS: O relançamento também reproduz o texto de Vinicius de Moraes escrito para o disco de 1968. Eu não entendo muito bem o sentido, mas ele diz que “ela facilmente poderia ser só uma cantora”.

JM: Ele achava isso. Ele já tinha percebido isso.

PAS: Ele estava criticando o fato de você também compor?

JM: Não, de jeito nenhum, acho que pelo contrário, ele está dizendo que eu não queria o caminho mais fácil. Que eu poderia ir bem como cantora, se eu quisesse ficar só nesse caminho. Mas ele sacou de cara que o caminho não era esse. Tanto que no final ele fala “Joyce, que vai dar o que falar”, não me lembro exatamente, “a que tem o sentido das palavras e conhece o mistério do seu casamento com as notas”, quer dizer, o ofício da composição, palavra e som.

PAS: E foi ele que te chamou de feminista na ocasião?

JM: Foi.

PAS: O que era ser feminista em 1968? Você se sentia?

JM: Eu não sabia nem o que era isso. Eu estava só escrevendo no feminino singular e achava que era muito natural. Mas, devido ao forrobodó todo que aconteceu, eu me dei conta de que não, de que não era ainda o momento disso. O momento chegou, mas naquela época realmente era uma coisa meio esquisita.

PAS: O forrobodó a que se refere é porque você falava “meu homem” (na letra de “Me Disseram”)?

JM: É, e de sempre falar na primeira pessoa do feminino. Isso não se usava. Ninguém fazia isso.

PAS: Estamos falando de machismo?

JM: Mas claro. Claro. Claro.

PAS: Hoje podemos decupar completamente o que significava tudo isso.

JM: Podemos e devemos (ri). Hoje é perfeitamente compreensível isso, a gente entende.

PAS: O machismo não teria adiado dez anos da sua história? Não foi isso que aconteceu?

JM: Acho que teria adiado dez anos ou mais. Tem hora que acho que ficar velha é uma coisa sensacional, porque começam as pessoas a valorizar um monte de coisa que você fez lá atrás e que ninguém dava a mínima. E as pessoas falam “Joyce é uma compositora do nível de um fulano de tal”, e aí falam dos grandes nomes da MPB. É engraçado isso, porque, né?, durante esses anos todos nem os meus colegas se davam conta disso. Porque eu não fazia concorrência com ninguém, porque eu era uma menina no mundo dos meninos, brincando no playground dos meninos.

PAS: Pra tentar não ser aquele cara de 1968 que disse que você quase parecia um homem, tenho que confessar que eu fazia parte disso. Eu não prestava atenção em você.

JM: Tá vendo?

PAS: E eu não sei se é porque você é mulher, eu acho que era. Tudo que tem acontecido leva a gente a entender essas coisas.

JM: Possivelmente (ri). Mas você não acha um espetáculo que isso está dando essa compreensão nova de todas essas coisas?

PAS: Importantíssimo.

JM: Eu acho um momento muito interessante, com todos os possíveis exageros que aconteçam e vão acontecer. É muito interessante que se dê atenção a esse negócio, “opa, peraí, mas então…”. Legal isso. Acho um momento muito emblemático.

PAS: No mesmo momento em que a moça que estava aí desde os 20 está se declarando “velha maluca”, é mais legal ainda.

JM: (Risos.) É uma outra próxima questão. O mundo vai ter que lidar com essa geração, do pessoal de 1968 por exemplo, os baby boomers, que mudaram também o conceito de velhice. O conceito de tempo também muda com a minha geração. É uma geração bem foda, viu?, que muda muita coisa.

PAS: A letra de “A Velha Maluca” é sensacional.

JM: Ah, que bom, que bom. Pois é, porque na verdade soy yo, né? Eu fiz pra mim mesma. Eu sou minha própria musa e tô totalmente no sujeito de mim mesma.

PAS: Olhando de fora e de longe, você não parece maluca…

JM: É uma nova maneira de encarar esse tempo extra de vida. Quando eu era menina, uma pessoa de 50 anos era pra mim uma pessoa decrépita. Hoje em dia 50 anos eu acho um jovem adulto. Porque a adolescência vai até os 35, mais ou menos, então os jovens adultos têm 50, 60, estão longe ainda de ser velhos. 70, agora, vamos lá, vamos começar um negócio aí e vamos ver como é que é.

PAS: Se for homem, às vezes fica moleque até morrer.

JM: Então, acho que tudo isso faz parte. Acho interessante. A gente tem que começar a lidar com essas coisas também.

PAS: Você vai fazer 70 ou já fez?

JM: Acabei de fazer, fiz em janeiro.

PAS: Esse seria um novo momento de feminismo, se afirmar como mulher de 70?

JM: Eu acho, sim.

PAS: Tetê Espíndola, que passou dos 60, já me falou isso.

JM: Acho que é uma próxima questão que vai ter que ser encarada, sim, totalmente. Tem um livro, as francesas verbalizam e contextualizam tudo, tem essa mulher que se chama Christiane Collange e tem um livro chamado A Segunda Vida das Mulheres, que é essa aí, a partir dessa idade. Ela fala 55 anos, eu não acho, acho que é mais à frente ainda um pouco. Mas de qualquer forma é uma vida nova, é todo um novo caminho, e é uma maneira bem diferente de lidar com isso.

PAS: Você fala disso em “A Velha Maluca”, de não ter mais compromisso em perecer bonita…

JM: A escravidão da beleza. Eu acho que a mulher sofre demais com isso.

PAS: Mais que o homem.

JM: Muito mais, mas muito mais. Infinitamente mais. Infinitesimíssimamente mais. Eu acho que é uma escravidão realmente que se vive. E é uma liberação quando você chuta o balde, quando diz “ok”.

PAS: Joyce, um dos momentos em que eu me dei conta dessa questão do machismo em relação às compositoras foi você justamente que provocou. Fui fazer uma reportagem sobre o clube da esquina e entrevistei um monte de gente, inclusive você. Algo que você falou, eu sei mais ou menos, mas não lembro perfeitamente, me despertou pro fato de que você era daquela turma, mas não aparecia. Por quê? Você disse: “O Milton Nascimento era a musa”.

JM: Eu falei pra você que Milton era a musa, e continuo achando isso (ri). É um grupo muito de meninos, rolava uma certa misoginia.

PAS: Era clube do Bolinha, como todos eram.

JM: Mas na verdade eu também não era desse grupo. Eu já te falei uma vez, eu sou a quinta coluna (ri). Eu sou de todos os grupos. Eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também (ri).

PAS: E você é Nara Leão, ela passava por todos os movimentos e não pertencia a nenhum.

JM: É, totalmente. Eu estava ali de espectadora. E enquanto isso, diferentemente do caso da Nara, que era uma intérprete de todos os movimentos, lindamente, embora todos esses movimentos me abraçassem muito – o samba, a segunda geração da bossa nova, os tropicalistas, os mineiros do clube da esquina…  – na verdade, na verdade, a minha música não é de grupo nenhum. Eu tenho meu nicho, que é um nicho muito só meu. É uma coisa minha, eu não tenho companheiros, nunca fiz parte de nenhum movimento, o movimento era eu sozinha ali com minha prancha surfando no meio dessa história toda.

PAS: Nisso você fica num lugar mais discreto, digamos, que não sei se é por vontade própria ou se é o machismo estrutural que coloca você nele e não te faz ser citada nem no meio dos bossa-novistas, nem do clube da esquina, e assim por diante.

JM: Eu acho que isso aí no futuro alguém vai descobrir. Por enquanto eu ainda não sei, eu sou uma criança, não entendo nada.

PAS: Esse é Erasmo Carlos (risos). No meio de tudo, bem cedo, Elis Regina percebeu você e te gravou (“Copacabana Velha de Guerra”, em 1970) e tentou, não sei de que maneira, furar essa barreira.

JM: Sim, ela gravou. Maria Bethânia, por exemplo, quando eu tinha 19 anos, ela já cantava minhas músicas, mas não chegou a gravar. A primeira que gravou foi Elis. Teve Marília Medalha que também me gravou, nessa mesma época (“Três Cavaleiros”, 1969).

PAS: É outra que também desapareceu do olho do furacão.

JM: Tem um começo ali de algumas pessoas já dando essa sacada, mas isso começa realmente a acontecer a partir de 1979. Aí, sim, vem uma enxurrada de gravações.

PAS: É a geração Malu Mulher, com um surto feminista, digamos.

JM: Isso. Aí vêm Elis, Bethânia, Quarteto em Cy, Milton, Nana Caymmi, Boca Livre, Joanna, um monte de gente começa a me gravar.

Editado de forma independente por um selo batizado Feminina, "Tardes Cariocas" (1983) chegou ao Japão e continha até então inédita "Nacional Kid", com Ney Matogrosso convidado a proferir os versos de zomba "mulher minha não mexe com essas coisa não/ tem que aprender a obedecer o seu patrão"

Editado de forma independente por um selo batizado Feminina, “Tardes Cariocas” (1984) chegou ao Japão e continha até então inédita “Nacional Kid”, com Ney Matogrosso convidado a proferir os versos de zomba “mulher minha não mexe com essas coisa não/ tem que aprender a obedecer o seu patrão”

PAS: E o Japão descobre você.

JM: O Japão em 1985 me descobre.

PAS: Teve que ser lá do outro lado do mundo?

JM: É, são coisas que acontecem, né? Agora essa história está mais bem contada. Eu reescrevi meu livro de 1996, a gente está pensando que vai sair mais ou menos em setembro. Vai ser reeditado, se chama Fotografei Você na Minha Rolleyflex, como o original, mas Remix. Estou fazendo o remix desses textos, com um livro-bônus que vem junto. Tem vários capítulos que não existiam, o livro praticamente dobrou de tamanho. E essa história de como o Japão me descobriu, o que aconteceu, por que eu fiquei escondida a partir de uma certa altura no início dos anos 1980, depois daquele sucesso todo. Tá tudo contadinho ali direitinho, a história agora está bem explicada.

PAS: Uma coisa que tem a ver com o momento do disco de 1968 é que, embora também não seja muito citada, você era da geração dos festivais da canção, era daquela turma em que está todo mundo.

JM: Sim.

PAS: Como foi participar dos festivais?

JM: Foi ótimo. Fiz amizades que duram até hoje. Acho que foi a melhor coisa. Profissionalmente me levou ao primeiro disco, que foi um fruto da participação em festival. E mais importante que isso, acho, são as amizades. Você vê os compositores, alguns estão até nas fotos do disco, estão todos produzindo, todos a mil, todo mundo com saúde forte, firme, fazendo música. Vários estão participando de 50, como Marcos Valle, Toninho Horta, Danilo Caymmi, Francis Hime, Roberto Menescal, que não é dessa época, mas é de antes até, me conhece de criança porque era amigo do meu irmão mais velho. São esses amigos que ficaram, Jards Macalé só não veio porque na ocasião estava doente, internado. Está todo mundo ótimo, inteirão.

PAS: Tutty Moreno entrou na história em que momento?

JM: Ele entra bem depois.

PAS: Ele não é o rapaz da primeira música?

JM: De jeito nenhum, nem sonhava em conhecer. Ele é o rapaz, por exemplo, de “Mistérios”. São músicas muito mais felizes. São outras situações. Conheci ele em 1977, em Nova York.

PAS: Bem depois então de ele ter tocado com os tropicalistas.

JM: Sim, ele já estava morando em Nova York quando eu cheguei lá. A gente se conheceu e em coisa de dez dias a gente já estava casado.

PAS: Podemos dizer que esse amor precipita seu reaparecimento com Feminina?

JM: De certa forma sim. Ele me ajuda a formatar o pensamento musical que eu tinha e que faltava exatamente essa completude rítmica que ele veio trazer pra mim. Ele contou, no programa que fizemos sobre Feminina com o Charles Gavin, que quando me viu tocar pela primeira vez bateu uma coisa e ele falou: “Opa, ali eu vou me dar bem, vou poder tocar como eu sempre quis tocar”, que é uma bateria livre. Isso é o lance do violão, a bateria se apaixonou pelo violão. O violão, por sua vez, estava esperando um baterista que tivesse essa coisa melódica e harmônica que ele tem tocando. Então deu muito, muito certo. Depois, o resto foi tudo consequência, mas acho que começa com a música mesmo. E a outra questão é a questão do homem que não tem medo de mulher. Isso é um negócio espetacular. Isso é um negócio que não tem preço, sabe? Porque no ambiente musical sempre, quando uma mulher aparece muito, às vezes fica difícil a relação entre casais em que os dois estão na mesma profissão.

PAS: Não aconteceu com vocês?

JM: Nunca aconteceu. Mas sabe o que é nunca, em momento algum, jamais? Todas as questões que possam ter havido eram pessoais, de homem e mulher, mas não de um artista, um músico para outro. Isso é espetacular, porque é o homem avant la lettre, sacando essas questões que as novas gerações de homens hoje estão descobrindo, e ele já sabia. Isso é um negócio que eu acho espetacular.

PAS: Podemos então inverter a máxima machista e dizer que atrás de toda grande mulher existe um grande homem?

JM: Atrás não tem, tem do lado.

PAS: Só pra inverter…

JM: Não, não, não, essa máxima não pode ser invertida nunca, nunca. Atrás não existe, existe do lado mesmo.

PAS: Antes de começarmos a entrevista aqui no palco, ele estava na bateria e eu ameacei falei que ele ia participar…

JM: Ele fugiu (ri)!

PAS: Fugiu.

JM: Ele saiu correndo.

PAS: Não sei se atrás, mas ele gosta de ficar no bastidor.

JM: Não, ele é um cara muito discreto. Mas é um músico que não preciso dizer quem é e todo mundo sabe a importância dele, e cada vez sabe mais. Está cheio de baterista fazendo tese de mestrado sobre ele aí. As pessoas sabem muito bem de quem se trata. E isso é muito legal, as pessoas se olharem como iguais e não ter essa questão em momento nenhum. Isso é uma joia, um negócio que não tem preço.

PAS: Mudando de instrumento, em 1968 ainda se chamava violão de pinho, como você diz na segunda música ()…

JM: Ah, o pinho… O pinho é a madeira de que se faz o violão, né?

PAS: Mas por que o nome pinho saiu de moda? É tão bonito.

JM: Hoje em dia as pessoas usam aquele fiber glass, né?, aquelas coisas todas. Mas o meu é de pinho. É de cedro, aliás. É cedro com cedro. Tem o pinho, o  jacarandá da Bahia, essas madeiras nobres todas são as melhores que fazem os violões. Tem o ébano ali no braço.

PAS: Você sempre foi do violão, e ele sempre foi seu?

JM: Sou completamente do violão, e ele sempre foi meu.

PAS: Por quê?

JM: Por que eu não sei… Comecei com ele aos 14 anos, ele era do meu irmão, não era meu. Meu irmão é que tocava, e eu comecei a ver meu irmão tocar com os amigos dele. Tínhamos 13 anos de diferença. Eu era filha temporã. Mas fiquei ali sacando aqueles garotos, Menescal, Eumir Deodato, aquela turma que chegava lá em casa e tocava com meu irmão. E quando ele saía eu pegava o instrumento dele e ficava ali tentando, e foi assim que aprendi, como autodidata.

PAS: Seu irmão não foi pra música?

JM: Não, ele poderia ter ido, porque era muito bom. Mas ele queria casar, queria ter uma vida toda regrada, certinha, então se formou em direito, foi trabalhar no Banco do Brasil, fez carreira no banco. É uma outra vida. Está com 83 anos, e tudo certo. A vida dele virou o que ele queria.

PAS: Você tinha referências femininas pra se inspirar?

JM: Talvez a minha mãe. Minha mãe não sabia que era feminista, mas era, embora ela tivesse uma série de questões comigo. Por ser de uma geração mais antiga – ela era de 1912 -, tinha uma série de coisas que para ela eram muito difíceis. Ela fazia na prática, mas não queria aquilo pra mim. Mas ela criou os três filhos sozinha, sempre trabalhou, sempre foi arrimo de família. E ela tinha uma questão, que hoje em dia olhando pra trás eu acho muito legal: ela queria muito ter estudado. Foi tirada da escola com 14 anos porque ficou noiva, do melhor partido de Niterói.

PAS: Não do seu pai?

JM: Não, daquele primeiro marido dela. Então ela ficou noiva com 14 anos, casou com 19, e a família tirou ela do colégio. E ela sempre teve muita sede de cultura, sempre gostou de ler, de música. Era interessada em todas essas coisas. E aí o que aconteceu foi que fez os filhos estudarem, sempre me ofereceu muita cultura, toda vez que sabia que tinha um concerto, uma peça de teatro, um balé. Me encheu de livros, todas as oportunidades que teve ela me encheu de cultura, e eu correspondi. Eu era a melhor aluna do meu colégio, da minha turma.

PAS: A letra de “Não Muda Não” dialoga com ela então?

JM: Eu acho que quem dialoga explicitamente com ela é “Feminina”, porque tinha essa outra questão, de dizer “minha filha, você não é feminina”. Passei minha adolescência inteira ouvindo isso, porque eu era meio tomboy, não gostava daquela coisa do vestido de organdi, da maquiagem, não gosto até hoje. Outro dia eu estava no show de aniversário da Wanda Sá, minha amiga há 50 anos, fui cantar com ela, e ela: “Nossa, te conheço há 50 anos e nunca vi você de salto alto, que absurdo”. Mas é verdade. Eu nunca gostei dessas coisas. Não era a minha onda.

PAS: Você sobe no palco sem maquiagem?

JM: Não, aquela maquiagem de serviço a gente põe (risos), mas não é o que eu gosto realmente de fazer. Eu sempre tive um gosto meio diferente em relação às meninas da minha idade. E a minha mãe adorava maquiagem, até 90 anos, que foi a idade com que ela morreu, se maquiava inteirinha pra ir ali na esquina comprar jornal. Ela tinha esse outro lado, e dizia: “Você está horrível, você não é feminina”. Então tive que fazer aquela música pra ver se ela entendia que “não é no cabelo ou no dengo ou no olhar”, é uma outra história. É muito freudiana essa música.

PAS: Mas estou achando que “Não Muda Não” também.

JM: Não, mas “Não Muda Não” é mais pros rapazes saberem que a disposição era outra, que eu realmente não era desse time das meninas que iam ficar noivas logo. Dispensei muitos pedidos de casamento, muitos pretendentes. Nunca pensei nisso. Claro que em algum momento você escorrega e casa cedo demais, que foi o que aconteceu, e aí tive duas filhas, fiquei um tempo parada, não foi legal pra mim.

PAS: É um pouco a história de todas as mulheres, ou a maioria.

JM: É, uma primeira experiência de casamento que não foi feliz, pra mim pelo menos. Mas a vida é isso mesmo, é tentativa e erro. A gente vai tropeçando, mas vai. Um dia acerta.

PAS: Tem um compacto seu de 1971 em que você canta “Nada Será Como Antes”. Foi antes de Milton gravar?

JM: Isso. Foi.

PAS: Você foi a primeira a gravar aquela música?

JM: Fui, no tempo em que a rede social se fazia pessoalmente, né?

PAS: Como foi essa história?

JM: Eu tinha ouvido a música, ele vivia almoçando lá em casa, mostrou a música, eu gostei e gravei. Ele adorou a gravação.

PAS: Sua versão ficou meio desconhecida…

JM: Ficou, mas você sabe que eu acho muito bom ser meio desconhecida até certo ponto, pra entrar no mundo mesmo com o pé direito, com a carreira com o pé direito? Eu sempre digo que não fiz carreira, eu faço música. A partir de Feminina sou eu de verdade, estou ali no controle, fazendo as minhas coisas, com a minha cabeça, com as minhas ideias, o meu violão, a minha voz, as minhas letras, quase todas, ou com parceiros, mas na maior parte minhas, meu pensamento musical. Tudo acontece na hora certa.

PAS: Como as gravadoras, que hoje nem existem mais, te viam?

JM: Rebelde.” Eu fiquei na geladeira durante alguns anos. Por muitos anos fui banida, literalmente um boicote.

PAS: Isso é antes ou depois de “Clareana”?

JM: Depois. Foi com aquele sucesso todo. Eu tive uma questão jurídica com a EMI-Odeon, que usou indevidamente um playback meu no disco de uma outra cantora. Só que era eu tocando, eu fazendo vocal de apoio, eu no arranjo, minhas filhas dando a risadinha no final de “Clareana”. Aí eu pedi, e falei com advogado, e foi tirada a música. Quer dizer, não tinha por que fazer outro disco, porque a vendagem da moça não justificava.

PAS: Não daríamos o nome aos bois, também?

JM: Não (a cantora era Sonia Mello, o LP era Grandes Mulheres Grandes Sucessos, de 1980, e o produtor, Miguel Plopschi). Eles tiveram que tirar o disco de circulação. E aí o produtor ficou muito aborrecido com essa história.

PAS: Quer dizer, ele roubou uma coisa sua e depois ficou bravo?

JM: É, e muitos anos depois eu fiquei sabendo exatamente o que aconteceu. Houve uma reunião de alto nível, em nível de presidentes de gravadoras, “ninguém mais contrata, pra servir de exemplo, pra não abrir precedente”.

PAS: Você tinha que aguentar calada?

JM: A ideia era justamente acabar com a carreira daquela pessoa que está se rebelando contra, né? Só que aí eu fiz um disco independente que foi parar no Japão. Aí, pronto, a minha vida mudou. Agradeço a todos eles, porque foi muito bom por esse lado.

PAS: Aí vem talvez o DNA dinamarquês?

JM: Será? Não sei.

PAS: Porque você fez um desvio dos caras que queriam te boicotar.

JM: Aí eu sou o quê? Viking (gargalha)? Tá bom.

PAS: Bruxa… Velha maluca… Na verdade é trágico, porque talvez você tenha conseguido fazer uma volta que a maioria não consegue.

JM: Pois é, graças a Deus consegui, sim, a volta está dada.

PAS: Porque gente com talento não falta.

JM: Não falta mesmo, no Brasil opa, agora então.

PAS: Mulheres, estamos falando, neste caso.

JM: Mulheres, gente em geral.  É muita gente. Eu vou te dar um exemplo de um cara que era supertalentoso, não é uma mulher, é um homem, mas passou por uma situação de ter toda a obra censurada, o Sirlan, lá em Minas. É um compositor talentosíssimo, e acho que se retirou completamente, porque o mercado às vezes tinha essa coisa tão agressiva, que as pessoas se retiravam mesmo, ficavam horrorizadas com aquilo.

PAS: Quando perguntei de referências femininas você falou da sua mãe, mas eu estava pensando em mulheres que tocassem violão, que compusessem, se você tinha isso pra se mirar.

JM: Ah, não, isso eu não tinha, ninguém.

PAS: Você teve que inventar? Tinha ali uma Maysa, uma Dolores Duran.

JM: É, tinha a Rosinha de Valença como instrumentista, mas era instrumentista, somente focada no instrumento. Referência assim não tinha nenhuma, não.

PAS: Inventou sozinha então?

JM: É, né?, é assim que é.

PAS: Nesse momento da volta pelo Japão, você vira uma artista superprodutiva, em termos de disco mesmo. Você faz muito disco, todo ano tem novidade sua.

JM: Faço até demais.

PAS: Nunca.

JM: Mas é que eu gosto de fazer disco, gosto de estar sempre inventando uma coisa, todo ano uma coisa diferente. Acho muito legal, e tenho milhões de projetos que não vou conseguir dar conta de realizar, porque quando eu conseguir realizar algum deles, o próximo, já vai ter algum outro que vou estar a fim de fazer, e por aí vai. Tem muitos projetos possíveis pela frente, mas muitos mesmo.

PAS: Pode contar alguma coisa?

JM: Tem vários. Por exemplo, minha parceria com Zé Renato. A gente tem uma parceria que já dá pra gravar um disco inteiro e ainda vai sobrar, um disco só autoral nosso. Isso já é um projeto, uma possibilidade. Aí tenho um monte de música inédita pra fazer um próximo disco autoral a qualquer momento, brevemente. Tenho um projeto com parcerias com pessoas em outros idiomas. Tenho uma parceria americana com letras em inglês. Tenho letra em italiano feita pelo Sergio Bardotti, que ele me deu e só fui musicar agora. Tem parceria minha comigo mesma em francês, meio francês, meio português. Tenho música com Paulo César Pinheiro que tem uma versão em espanhol. Tem todas essas possibilidades, de mil coisas. Tem colaborações com outros músicos, que eu adoro fazer, de vez em quando eu junto com alguém, tipo fiz com Kenny Werner, um superpianista americano, fizemos um disco lindo só de canções bonitas. De vez em quando tem essas coisas, quando você está circulando no mundo uma coisa interessante é isso, você conhece um monte de gente e vai trocando, e vai fazendo.

PAS: Apesar de todas as mudanças, continua sendo um clube do Bolinha todo esse mundo da música?

JM: Não, tem mulheres bacanas também pra trabalhar. Agora, então, tem uma safra de instrumentistas muito legais. Muitas, muitas. São todas umas meninas jovens, de 30 anos, legais. Tem Joana Queiroz, Antonia Adnet, uma arranjadora chamada Gaia Wilmer, que é um espetáculo. Tem um monte de mulher bacana fazendo música, está cheio.

PAS: Tem Clara e Ana (as filhas se tornaram as cantoras Clara Moreno Ana Martins).

JM: Tem Clara e Ana, que são cantoras, que optaram por ser cantoras. Estou falando das instrumentistas, que é um caminho mais difícil, mais complicado ainda.

PAS: Tem algumas artistas já fazendo shows com 100% de mulheres, todas as instrumentistas.

JM: É, isso eu não acho legal. Eu jamais faria um trabalho só com mulher tocando, se essas mulheres não estiverem na mesma vibe musical que eu. Aí é uma outra questão. Em muitos momentos, por exemplo, quando fiz trabalhos educativos que fiz pra MultiRio, de música brasileira, pra botar nas escolas, eu sempre tinha um segundo violonista trabalhando comigo, uma pessoa dividindo os programas comigo. Teve série que foi com Antonia Adnet, superlegal. Teve série que foi com Alfredo del-Penho, igualmente superlegal. Tem um disco meu chamado Astronauta, que gravei em Nova York, com pianistas americanos, metade com Mulgrew Miller, homem, metade com Renee Rosnes, mulher, igualmente legal. Vai pra o que a música pede. Não penso no gênero da pessoa.

Em 1998, Joyce gravou "Astronauta - Canções de Elis" em homenagem ao repertório da cantora gaúcha que foi uma das primeiras a gravá-la

Em 1998, Joyce gravou “Astronauta – Canções de Elis” em homenagem ao repertório da cantora gaúcha que foi uma das primeiras a gravá-la

PAS: É que hoje em dia isso está muito em voga.

JM: Está muito em voga. Pra quem quiser trabalhar assim, OK. Nesse meu disco, por exemplo, tem a Joana Queiroz de clarone logo na primeira faixa, “Não Muda Não”. Mas é uma coisa que a música estava pedindo o som daquela pessoa, então vamos lá.

PAS: Você já fez discos pro Tom Jobim, pro Vinicius de Moraes, e teve um pra Elis Regina, de uma mulher para outra…

JM: Fiz um pro Dorival Caymmi também, que não saiu ainda aqui no Brasil. Tá vendo?, tem muitas possibilidades, e eu quero todas.

"Fiz uma Viagem - Songs of Dorival Caymmi", 2017

“Fiz uma Viagem – Songs of Dorival Caymmi”, 2017

PAS: Quando você fez pra Elis era uma mulher, mas cantando músicas de homens…

JM: Repertório da Elis.

PAS: Ela não teve também tantas mulheres pra ser a intérprete delas.

JM: São escolhas, né? É uma maneira, minha leitura da Elis foi ali.

PAS: E era assim, ainda é um pouco. Entendo que a questão de gênero fique meio chata se a gente fica insistindo nela, mas…

JM: É, eu quero a música.

PAS: Mas encontrar você, que é uma pessoa que falou sobre isso e sabia disso, embora não tenha feito essa bandeira… Tinha a ver com seu gênero, quando os caras da gravadora queriam boicotar, não tinha?

JM: Acho que sim. Acho que sim.

PAS: É legal revisar isso, porque a gente descobre coisas que não sabia sobre nós mesmos.

JM: Mas não cabe a mim também muito. Cabe a mim apenas relatar, e aí as conclusões as pessoas vão tirando. É mais isso.

PAS: Muitos compositores pegam implicância dessa ou daquela música que escreveram quando eram jovens, e não querem mais voltar a elas. Pra você pegar seu primeiro disco e regravar inteiro, é porque não tem isso?

JM: Não, não tem mesmo. Eu acho, claro, que obviamente houve uma evolução na questão da composição. Mas o ponto é que aquelas composições já tinham um negócio legal. E feitas hoje, com as ferramentas que eu tenho hoje, que eu não tinha naquela época, dá mais um sabor pro negócio, fica mais legal ainda.

 

 

 

Lucina, voz de árvore

$
0
0

Lucina

Lucina Carvalho, ou simplesmente Lucina, já foi Lucelena, Lucinha, metade de Luli & Lucina. Não foi tantas por crise ou falta de identidade, mas antas, talvez, pela dificuldade de encontrar um lugar para chamar de seu ao sol da música popular brasileira, dessa MPB que foi e é tão profundamente masculina nos gabinetes quanto democraticamente pansexual nos bicos de palco.

Ainda menina, foi lançada como cantora no bojo da era dos festivais (interpretando Dori Caymmi Wagner Tiso) e como intérprete secundária do Grupo Manifesto, do qual sairiam também dois futuros capos (machos) da indústria musical brasileira, Mariozinho Rocha (até hoje poderoso-chefão das trilhas sonoras da Rede Globo) e Guto Graça Mello (diretor musical e arranjador também global, pela Som Livre dos anos 1970, e produtor constante de, entre outros, Roberto Carlos Maria Bethânia).

"Manifesto Musical" (1967) incluía "Margarida", romantismo vencedor de festival composto por Gutemberg Guarabyra

“Manifesto Musical” (1967) incluía “Margarida”, romantismo vencedor de festival composto e interpretado pelo integrante Gutemberg Guarabyra

“A minha música não traz mensagem/ e não faz chantagem ou guerra fria/ e nem fala em ideologia/ou vim apenas pra te falar/ de uma grande perda que nem sei/ se é da direita ou da esquerda/ e que importa se a censura corta?/ pois eu gosto dela se é vermelha/ ou se é verde e amarela”, cantava, confusa, a canção-manifesto “Manifesto” (1967), de Guto e Mariozinho. “Para mim foi um grande golpe/ não sei se de Estado ou armado/ ou talvez de coração/ só sei dizer que a dor foi muito grande”, completava o grupo que hoje talvez se pudesse dizer “isentão”, entre canções batizadas de “Garota Esquerdinha” (“você fala de Freud e nunca lê”),”Cabra Macho” (“achar macho hoje é fácil/ o difícil é achar home”, “mas também tem muito rico/ que não é macho e nem é home”), “Maria Redentora” (“eis que surge um belo dia um senhor de mil promessas/ numa dessas a Maria se casou com um marechal”) e “Garoto Paissandu” (“de fome ele fala, mas não passa/ se o chamam de burguês ele acha graça/ é contra o imperialismo, mas só usa calça Lee/ tem soluções para o Nordeste, mas não quer sair daqui”).

A futura parceira Luhli estreou em 1965 com "Luli", em que aparecia como autora de apenas uma faixa, entre composições masculinas de Geraldo Vandré, Sidney Miller e Luiz Carlos Sá

A futura parceira Luhli estreou em 1965 com “Luli”, em que aparecia como autora de apenas uma faixa, entre composições masculinas de Geraldo Vandré, Sidney Miller e Luiz Carlos Sá

Talvez incompatível com as convenções da indústria fonográfica da virada dos 1960 para os 1970, Lucina se encontrou como compositora e parceira de Luli, futura Luhli (inclusive num “trisal” formado com o fotógrafo Luiz Fernando Borges da Fonseca). A dupla Luli & Lucina jamais deixou de ser “underground”, mas é responsável por naco expressivo do sucesso de massa da MPB dos anos 1970 e 1980.

Pela Som Livre dirigida por Guto Graça Mello e em grupo hippie com O Bando, Luli e Lucinha lançaram o compacto "Flor Lilás", em 1972

Pela Som Livre dirigida por Guto Graça Mello e em grupo hippie com O Bando, as então Luli e Lucinha lançaram o compacto “Flor Lilás”, em 1972; lado B, o rock hippie-progressivo “Floresta Encantada” já prenunciava os Secos & Molhados e as canções de natureza feminina que viriam

Para os Secos & Molhados, Luli compôs os clássicos pop-andróginos-progressivos “O Vira” (1973) e “Fala”, em dupla com João Ricardo. Convertido em astro solo, Ney Matogrosso celebrizou bombasticamente criações ciganas-indígenas-hippies da dupla como “Bandolero” (1978), “Napoleão”, “Coração Aprisionado” (1980), “Eta Nós” (1984) e “Bugre” (1986). Em comunidade praieira hippie, compunham e criavam os filhos que ambas tiveram com o marido Luiz Fernando, que por sua vez fotografava Ney em tons sobre-humanos para o álbum de estreia Água do Céu – Pássaro, de 1975.

Em "Água do Céu - Pássaro" (1975), de Ney Matogrosso, Luiz Fernando fotografou a capa e Luli & Lucina assinaram o lancinante épico natural "Pedra de Rio"

Em “Água do Céu – Pássaro” (1975), de Ney Matogrosso, Luiz Fernando fotografou a capa e Luli & Lucina assinaram o lancinante épico natural “Pedra de Rio”

Com a morte de Luiz Fernando e a separação de Luhli, Lucina segue brava trajetória solo desde os anos 1990, em composições femininas em dupla com Luhli, Alzira E, a sósia vocal Zélia Duncan e a jornalista Patrícia Ferraz, sua companheira há décadas. Espalha-se entre discos de MPB (como + do Que Parece, de 2009, inteiramente composto com Zélia) e dois álbuns antológicos de pontos de umbanda, Ponto sem Nó (2002) e Gira de Luz (2004). No ano passado apresentou o trabalho mais recente, Canto de Árvore, sobre o qual falou na entrevista a seguir (também em vídeo), registrada em São Paulo, em 18 de novembro de 2017.

Pedro Alexandre Sanches: A canção “O Que Ficou” é assinada “de Luhli para Lucina”. Qual é a história dessa música?

Lucina: É uma música que conta a história da gente enquanto tribo. É um retrato bem fiel daquilo tudo que a gente viveu como tribo. Mas tem um detalhe: eu faço aniversário no dia de Natal, 25 de dezembro. E eu sempre reclamava, “puxa vida, só ganho um presente”. Claro, ganho um presente melhor, mas é um presente só, porque é Natal e embola tudo. Aí a Luhli falou: “Pode deixar que vou te dar um presente”. Isso foi na primeira vez, muito tempo atrás. Ela fez o primeiro presente, e em seguida todos os anos que vieram ela fez uma música pra mim de presente.

PAS: Isso foi quando?

L: Foi mais ou menos em 1974, faz muito tempo.

PAS: Mas a primeira não foi essa música, foi?

 

L: Não foi essa. Ela foi fazendo, foi fazendo, foi fazendo. Essa aí está lá pelo meio, é meio anos 1980, onde ela conta qual era o barato (ri). Ela é antiga e inédita, é aquela música que ficou preservada, a gente nunca gravou. Eu fui cantando, em um show ou outro, com ela. Depois realmente ela ficou stand by, esperando o momento dela. Aí quando teve esse Canto de Árvore eu achei que, até por conta do Yorimatã, o filme que foi lançado (com direção de Rafael Saar), eu quis fazer um link com aquele filme, com a nossa história. Aí vou te contar a verdade, tá?

Em "Canto de Árvore", a autora canta "O Que Ficou",  "de Luhli para Lucina": "Foi muita droga, muita ioga, muita vertigem/ foi muito verde, muito mar, muito banho de chuva/ foi muito sol e som/ doía de tão bom"

Em “Canto de Árvore”, a autora canta “O Que Ficou”, “de Luhli para Lucina”: “Foi muita droga, muita ioga, muita vertigem/ foi muito verde, muito mar, muito banho de chuva/ foi muito sol e som/ doía de tão bom (…)/ ficou você e eu/ cada uma na sua/ no pescoço uma guia”

PAS: Por favor. Gostamos.

L: Você sabe que a gente tem uma mente um pouco cariada, né? Às vezes a memória da gente é meio cariada (ri). Eu achei que a música era minha. Quando eu peguei “O Que Ficou”, pra mim era nossa, era de Luhli & Lucina, pronto. Quando fui olhar de verdade pra música, falei: não, essa música é presente musical, foi um presente da Luhli pra mim. Aí achei que era mais interessante até, porque é a única música que não é minha nesse CD. Tudo é autoral, e aí entra essa música da Luhli falando de mim, da tribo, da vida, fazendo esse link. É uma alegria poder estar fazendo essa música agora. E quando gravei teve o seguinte: eu fiz uma base de violão, baixo e piano. Quando escutei, falei: cara, eu não quero o meu violão. Tirei o violão. Maurício Cajueiro, dono do estúdio onde eu estava gravando, falou: “Mas você vai ficar nua, você não tem apoio, é muito corajoso fazer isso”. Nei Marques falou: “Colocando violão você ganha uma coisa mais comercial, uma levada”. E eu tirei o violão. Fiquei pelada no meio de todo mundo. Eu adoro.

PAS: Quando eu ouvi essa canção, tive a impressão que era mais recente, que contasse a história bem depois de ela ter acontecido. Então não é bem isso.

L: Porque a gente teve uma fase, primeiro, em que a gente morou em Figueiras, perto de Mangaratiba, que foi a fase em que a gente ficou totalmente dedicada à tribo, e a fazer aquelas músicas quase que diariamente, porque o lugar é muito inspirador, na baía de Sepetiba, em frente pro nascente, e a gente na plataforma, na frente da gente o mar mesmo, uma vista maravilhosa. A gente tinha muita inspiração, mas naquela vida, com criançada e tudo mais, Luiz Fernando (Borges da Fonseca) e as crianças. Depois dessa primeira fase em Mangaratiba a gente veio pra São Paulo, que foi quando chegamos no Lira Paulistana e começamos a sentir que aquilo que a gente tinha feito dava um caldo bem bacana. São Paulo foi um lugar que realmente mostrou pra gente a força que a gente estava trazendo de raiz.

PAS: Os primeiros versos, só pra contextualizar?…

L: (Canta.) “Foi muita droga, muita ioga, muita vertigem/ foi muito verde, muito mar, muito banho de chuva”.

PAS: Eu tive o privilégio de levar você até a casa da Luhli na serra, e teve um momento emocionante em que ela mostrou uma música inédita. Pensei que pudesse ser essa, mas então era outra. Aquela está inédita ainda?

L: Está inédita numa gravação minha, porque foi gravada por uma cantora do Rio, a Lucelena Vaz, num arranjo deslumbrante. É a música que eu dei de presente pra ela, e ela voltou com essa letra e naquele dia me mostrou, deixou mostrar naquele dia, pra me fazer chorar, né?

PAS: Choramos todos.

L: Choramos todos.

PAS: Com os pirilampos e as fadas.

L: (Risos.)

PAS: Você é mato-grossense, de Cuiabá.

L: Realmente, é curioso. Em Cuiabá a música não é o forte.

PAS: Como foi sua vivência musical na terra natal, e como isso influenciou e influencia a sua música?

L: Eu tive uma vivência pequena em Cuiabá, curta, de férias.

PAS: Você não chegou a morar?

L: Não. Minha mãe morou a vida dela inteira antes de casar. Meu bisavô é o historiador de Cuiabá, é nome de praça, biblioteca, Estêvão de Mendonça. Minha avó foi uma pessoa importantíssima nas artes em Mato Grosso, porque ela tocava piano, acordeon, pintava, tinha saraus em casa. Ela tinha uma relação muito forte com a cultura do lugar.

PAS: Então a família materna é mato-grossense, de Cuiabá mesmo?

L: Mato-grossense, de “chapa e cruz”, como eles falam, isso é que nem carioca da gema. É aquele que tem raízes fincadas no lugar. Mas eu saí de lá e fui pra Belém, pequena, e fui criada em Belém.

PAS: A parte paterna é de Belém?

L: É Belém.

PAS: Que mistura é você, floresta com pantanal. Isso explica a música toda.

L: É legal, né? Eu voltava muito pra Cuiabá, ia pra fazenda. Então tive contato com a música de lá, das fazendas, a coisa sempre ternária, praticamente, as guarânias, a coisa da sanfona, da viola, aquela rítmica toda já vinculada com o ambiente. Quando você recebe tudo de uma vez só, aquilo fica em você pra sempre, não desvincula nunca mais. E em Belém também, Belém com uma história, uma seiva musical muito forte, inclusive com a influência das Guianas. Toda aquela parte do Norte recebe a música que vem ali de cima.

PAS: Você disse que acredita que Cuiabá não tem uma tradição musical muito forte?

L: É curioso, você não encontra tantos cantores e compositores que ganhassem relevância. A Helena Meirelles mesmo não era de Cuiabá. Almir Sater é Mato Grosso do Sul.

PAS: Hoje uns são do sul e outros, do norte, mas vocês nasceram todos mato-grossenses, quando não havia dois estados.

L: Todos mato-grossenses. É o Mato Grosso.

PAS: Você, os Espíndola, Almir Sater…

L: Ney Matogrosso.

PAS: Toda uma galera.

L: Uma galera maravilhosa, né?

PAS: Você é uma das poucas que era lá de cima.

L: É, é verdade. Cuiabá é forte na pintura, nas artes plásticas. São exuberantes, muitos artistas se fizeram ali, o João Sebastião (da Costa), muita gente.

PAS: Mas volto a dizer, quando vocês nasceram não eram dois Matos Grossos, era um só. Você sente uma identidade comum com esses outros artistas que citamos?

L: Me identifico perfeitamente, a gente tem uma ligação profunda. É curiosa minha ligação com os Espínola…

PAS: Que rendeu um disco maravilhoso ainda inédito comercialmente, Água dos Matos.

"Água dos Matos", de Tetê Espíndola, Alzira E, Lucina e Jerry Espíndola, resultou de uma expedição musical pelos rios Cuiabá e Paraguai

“Água dos Matos”, de Tetê Espíndola, Alzira E, Lucina e Jerry Espíndola, resultou de uma expedição musical pelos rios Cuiabá e Paraguai

L: É, na verdade conheci Tetê (Espíndola) e Alzira (E) na casa delas, quando eu era garota, tinha 14 anos. Estava viajando com a minha avó, indo pra Cuiabá, e tinha que pernoitar. E a maior amiga que ela tinha era a mãe da Tetê e da Alzira.

PAS: Isso em Cuiabá?

L: Isso em Campo Grande. Eu passei em Campo Grande, pousei na casa das meninas, nem sabia, nem eu era da música, nem delas, nem nada. É um enredo, né?

PAS: Sem contar Água dos Matos, que saiu de uma expedição de vocês todos pelo rio…

L: Rio Cuiabá e rio Paraguai.

PAS: Sem falar disso, o Pantanal é uma referência pra você? Influencia na sua música, ainda que você tenha saído?

L: As águas, né? É muito forte.

PAS: Você só fala de água, e leva Luhli junto com você.

L: (Ri.) Levo.

PAS: Levou.

Ainda como Luli & Lucinha, e depois de assinarem sucessos na voz de Ney Matogrosso como "O Vira", "Fala" e "Bandolero", Luhli e Lucina estrearam em disco de dupla que continha "Coração Aprisionado" e "Yorimatã Okê Aruê"

Ainda como Luli & Lucinha, e depois de assinarem sucessos na voz de Ney Matogrosso como “O Vira”, “Fala” e “Bandolero”, Luhli e Lucina estrearam em disco de dupla que continha “Coração Aprisionado” e “Yorimatã Okê Aruê”

L: Levei. Levo. Não levei, não tem passado, não. A dupla pode ter terminado, mas a parceria continua, a gente tem coisas lindas atuais.

PAS: Falei bobagem, pra variar.

Em 1982 surge "Yorimatã - Amor de Mulher", com Luhli na capa...

Em 1982 surge “Yorimatã – Amor de Mulher”, com Luhli na capa…

...e Lucina na contracapa, e no repertório "Gira das Ervas", "Primeira Estrela", "Ponto de Oxum" e "Índia Puri"

…e Lucina na contracapa, e no repertório “Gira das Ervas”, “Primeira Estrela”, “Ponto de Oxum” e “Índia Puri”

L: É (risos). O Pantanal sempre foi uma influência pra quem esteve perto. Aquilo ali, também, são as referências que te movimentam por dentro. Não é só uma movimentação estética, “ó, que lindo”. Porque é lindo, mas fazem uma alquimia pra sempre em você.

PAS: Como diz Aldir Blanc, o Brasil não conhece o Brasil. O Brasil não conhece os Matos Grossos.

L: Não conhece, não conhece quase nada.

PAS: E inclusive, em alguma medida, a sua música e da Luhli, essa música interior que vocês fazem.

L: Não conhece. E é extraordinária a quantidade de gente boa fazendo música incrível por aí. Tem lugares que são grandes mananciais, como Belém ou o Mato Grosso do Sul.

PAS: Provavelmente água é música e música é água.

L: Com certeza, com certeza. É demais. Macapá é incrível, tem muita, muita coisa bonita lá.

PAS: Seu disco mais novo se chama Canto de Árvore, faz parte desse mesmo ecossistema, uma parte dele.

L: Faz parte, eu me senti como essa árvore, sabe?, como essa madeira. O Canto de Árvore é uma madeira no rio, é a madeira da árvore e é a madeira no rio, sobre o rio, também. Tem uma coisa espacial, viajante, que já é coisa de arrudA, que é paulistano, uma linguagem completamente contemporânea, muito forte.

PAS: Gosto da música em que você diz que é do contra, e explica na própria letra que ser do contra não é o que parece.

L: “Do Contra” é parceria com Iso Fischer, meu parceiro lá de Curitiba. Ele na verdade mora lá, saiu de São Paulo. Ele é muito legal, tem umas imagens muito características, a música dele é toda cheia de imagens que te carregam. Quando cheguei na casa dele, falei: “Olha essa música que eu fiz, bota letra pra mim”. Ele falou: “Ih, esse é um samba. Do contra”. Falei: “Ué, mas não é mais samba então, se está no contra”. “Não, é um samba do contra.” E veio “Do Contra”, fazendo essa brincadeira.

PAS: Se ajusta a você o que essas palavras dizem?

L: Completamente (ri). Mas eu vou contrariar na música, na expectativa que você tem de que aquilo seja um samba quadrado. Nesse ponto é onde eu posso contrariar. Eu acho que tudo que faço é muito simples, mas tem um truque. Esse truquezinho a gente poderia dizer que é uma contradição, mas não é. É um truque. É onde você pode falar “ah, é tão simples”, e de repente você tropeça, porque tem o tal do truque. Estava conversando sobre isso com a Alzira, ela estava curtindo com a minha cara, “pô, a Lucina, sabe como é que é, você ri de si você mesma”. Como assim, Alzira? “Você faz o acorde e ri dele, eu acho engraçado ver você rindo”. Aí ela foi tocar pra mim uma música que eu pedi e ficou rindo do truque que ela fez. “Alzira, você também ri do seu truque.” É uma brincadeira que a gente sabe que está ali dentro e é o que vai tornar aquilo interessante.

PAS: Ser mulher compositora num universo que nem sempre parece, mas é tão masculino, é um modo de ser do contra? É uma teimosia? Como faz pra sobreviver nesse “men’s world”?

L: Não. Não é do contra ser compositora num mundo que historicamente tem muito mais compositores homens. Essa história toda do homem saber fazer a música e a mulher servir para adornar e para cantar aquela música… Pode aparecer como cantora, mas como uma pessoa com ideias, já… Não é bem o mundo que a gente está vivendo.

PAS: Está mudando muito, né?

L: Mudou. Mudou. A Luhli…

PAS: E é na mudança que a gente se dá conta de que era como era.

L: É verdade. A Joyce

PAS: Eu mesmo não percebia muito do que venho percebendo, de como são interessantes as compositoras, embora eu sempre prestasse atenção nas cantoras.

L: Pois é, a Joyce falou, no depoimento no Yorimatã, que ela teve esse problema, de as pessoas falarem “música boa demais para ser de mulher”. A Luhli teve algum tipo de preconceito, sim. Mas eu, sinceramente, não tive, não senti esse preconceito. Eu já cheguei, e mesmo tendo chegado tão logo em seguida, não senti realmente nenhum tipo de barreira.

PAS: Mas, por exemplo, o fato de você nunca ter sido uma artista de massa não se deve a um preconceito? Se deve ao seu temperamento?

L: À minha escolha. Não é temperamento, é escolha. É claro que eu quis fazer sucesso um dia. Eu quero fazer sucesso ainda. Não nesse sentido de pagar qualquer preço para ter sucesso. Isso eu não faço. Tanto não fiz que não fiquei famosa (ri) numa fama de massa. Ganhei prestígio, respeito, que era bem o que eu queria ganhar. Queria ganhar mais dinheiro (ri), que é o que a massa traz. Sucesso de massa te traz retorno financeiro. A gente tem que matar aquele famoso leão por dia, que é real. Ao mesmo tempo, o fato de eu ter esse desafio diário me torna contemporânea. Estou absolutamente de acordo com o meu tempo. Não estou defasada deste tempo, porque estou na luta. O fato de eu ser já uma pessoa sênior, de ter uma carreira de 50 anos…

PAS: É tudo isso?

L: Tudo isso, cara. Eu comecei muito cedo, garota, cantando no Grupo Manifesto. Teve toda uma situação de uma menina bem jovem que veio vindo, veio vindo, veio vindo. Então, quando eu olhei eu tinha 50 anos de carreira. Mas 50 anos de carreira, não sou uma velhusca pensando no passado, com um discurso antigo. Meu discurso é atual, acredito que muito por conta de eu estar antenada e viver pagando um preço para estar aqui com a minha carreira, na batalha. E também, por outro lado, a minha música vem fresca, tem esse frescor de quem está aqui e agora.

PAS: Me identifico muito com você, porque, apesar de homem, estou aqui te entrevistando neste celular, e se tivesse feito outras escolhas talvez estivesse fazendo com uma câmera, num programa de televisão. Só que nesse caso talvez não estivesse entrevistando você, e sim uma pessoa correspondente a esse outro universo que a gente não habita. Mas eu ainda pergunto, é escolha?

L: Sim, sim. Houve uma série de escolhas, lá pra trás. As escolhas começaram bem lá atrás, na hora de gravar disco com gravadora, onde eu não tive nenhuma vontade que a minha obra fosse mexida, “isto aqui é mais legal”, “canta esse tipo de música” ou “faz uma música parecida com aquela”. Realmente não rolou, não dava. E, por conta disso, “ah, essa aí não pode mexer”, “não dá pra ser moldada exatamente do jeito que a gente gostaria”. Você fica numa bandejinha ali.

PAS: Isso ainda na dupla, ou já na carreira solo?

L: Ainda na dupla. Na carreira solo eu já estava completamente definida. Na minha primeira fase eu comecei uma carreira de cantora. Eu era uma grande promessa de cantora. Gravei um monte de disco de festival, fui do Grupo Manifesto, mas sempre cantora. Na hora que comecei a compor eu não parei mais. Mas só que a fase da compositora foi onde me encontrei com uma parceira ideal.

PAS: Aí não era somente uma, mas duas, juntas.

L: Exatamente. Aí a gente fez a dupla, e eu fui seguindo, seguindo, seguindo essa carreira, e sempre alternativa. Aí eu já estava, já gostei, já fiquei, do meu jeitinho. Deixa eu tirar essaa lágrima aqui, que meu olho chora sozinho.

PAS: Ah, pensei que era emoção, poxa.

L: Sabe que o Clodovil achou que era, mil anos atrás, numa entrevista? Este (o esquerdo) é o olho que chora, é só um, que tem um canal lacrimal que chora sozinho.

PAS: Isso é uma bruxaria.

L: Ele achou que eu estava muito emocionada.

PAS: E você não desmentiu ele.

L: Claro que não, fiz aquela cara horrível de péssima atriz.

PAS: Em outras circunstâncias eu seria o Clodovil, e você, talvez, a Joelma (risos).

L: Não, você não é o Clodovil, você não poderia ser (risos).

PAS: E vice-versa. Nada contra eles, vai, eles são legais…

L: Não, imagina. Não mesmo. É que não cabia, não ia ficar nada bem.

PAS: Qual seria a sua música mais famosa, das cantadas por outras pessoas?

L: Ah, o “Bandolero”, com certeza.

PAS: Um trechinho?

L: (Canta.) “Eu, bandolero,/ no meu cavalo alado/ na mão direita o fado/ jogando sementes/ nos campos da mente”. Essa é a mais famosa, de massa. A segunda mais famosa, de massa, é “Eta Nóis”, que foi gravada pelo Rolando Boldrin, com uma dupla sertaneja acompanhando, pelo Ney, pela Mãeana agora. Mãeana tem 20 e poucos anos, é uma figurinha dessa nova geração, é casada com um dos filhos do Gilberto Gil, com o Bem. Foi incrível, porque ela jogou essa música pra um público muito jovem. Agora Rubi e Kléber Albuquerque acabaram de gravar também.

PAS: Um trechinho?

L: (Canta.) “Nós se cruzemo na espiral da vida/ mais de uma vez eu tenho consciência/ de que a vida não tem coincidência, ai”.

PAS: Na origem ela era caipira, não sei se já na primeira gravação.

L: Ela é, eu fiz caipira, imagina, foi intencional.

L: (Canta.) “Nós se gostemo e se tornemo amigo/ mil música cantemo pros nossos ouvido”. Foi proposital, e foi de verdade, foi um amigo da gente que aprontou uma e eu fiz, essa letra é minha.

PAS: Eu ia perguntar, qual é sua frequência em fazer letra?

L: “Bandolero” também é minha. “Eta Nóis” é minha e tem uma parte, muita coisa, da música também. A frequência é muito melhor do que de melodia. Eu sou uma melodista por natureza.

PAS: Caudalosa.

L: Caudalosíssima (risos). E tem uma música que é a música mágica que a gente tem, que é “Primeira Estrela”. Ela é a música mais cantada que a gente tem. Foi gravada pela Nana Caymmi, mas ela tem uma coisa alternativa que foi cantada por mais de 40 corais no Brasil inteiro, dançada por mais de 30 grupos de dança. E todas as vezes que alguém chega pra mim e diz “eu adoro aquela sua música”, eu olho pra cara, só espero, três, dois, um: “Primeira Estrela”.

PAS: Trechinho?

L: Detalhe: “Primeira Estrela” é cantada nas festas populares de todo o estado do Rio e de Minas Gerais.

PAS: Essa música é um igarapé, aqueles braços de água que a gente não percebem muito que existem, mas levam a água?

L: Exatamente. O refrão dela diz (canta) “toda criança que nasce parece a primeira estrela/ amor promessa brilhando no céu do tempo/ mas na porta do mundo tem uma roseira que flora e chora”. É linda.

PAS: É do primeiro disco de vocês? Do segundo?

L: Do segundo, Yorimatã – Amor de Mulher.

PAS: Feita pras crianças.

L: Feita pras crianças.

PAS: Tem esse vínculo também.

L: Tem. Eu fiz mesmo pros meninos, quando fiz a melodia. Pra um deles, os meus gêmeos, especialmente, o Pedro, teu xará. Ele teve uma historinha meio triste, nasceu mal pra caramba, todo apertadinho. Quando ele estava recuperado, eu descobri que quando ele cantava no agudo ele adorava, ficava doido. Passei por ele e brinquei (cantarola a melodia).

PAS: Inventou na hora?

L: Não me toquei, fiz qualquer coisa. E ele ria, ria. E a Sônia Prazeres estava em casa passando uns dias, escutou a música, saiu correndo, completou. Falei: “Gente, essa música é boa”. Ela disse: “Não é boa, não, é ótima”. Peguei, botei no violão, aí saiu o mundo.

PAS: Falando em crianças, me impressiona muito algo que eu soube só na entrevista com Luhli & Lucina, a história com o Sítio do Picapau Amarelo. Já fui uma criança feliz por ter tido o Sítio e teria sido mais ainda se Luhli & Lucina cantassem ali também.

L: É verdade, a gente tem um trabalho grande pra criança.

PAS: Foram convidadas a fazer as músicas do Sítio pelo Dori Caymmi?

L: Não, foi o Roberto Menescal.

PAS: Depois é que a direção musical acabou com Dori?

L: É, foi o Menescal. Nós gravamos uma…

PAS: Foi um momento em que o sucesso bafejou?

L: Bafejou geral, geral.

PAS: E Luhli não quis? Ou foi você? Ou foram ambas?

L: Foi a Luhli.

PAS: Ou você botou a culpa nela?

L: Botei a culpa nela nada (risos). Não, a Luhli tinha uma razão. Ela realmente ficou revoltada, porque ela tinha feito “O Vira”. “O Vira” e “Fala”, grandes sucessos dos Secos & Molhados.

PAS: Ela tem um toque de Midas na hora de compor, né?

L: Menino, essas duas músicas, total, é ouro puro. Duas músicas lindas, do João Ricardo, com essas letras ótimas, ótimas, ótimas. Defeituosas, lógico, tinham que ser minhas, era pra ser Luhli & Lucina (ri). E aí, claro, todo mundo queria um novo Vira, e isso irritou demais. Ela disse: “Não vou fazer o novo Vira, não quero, pronto”. E aí realmente ficou meio mal parada a história.

PAS: “O Vira” batia com criança, né? Não tem esse mistério?

L: Batia e bate, né?

PAS: Mas, também, fala de sacis, fadas…

L: É, inclusive eu mesma tenho várias coisas paralelas, oficinas de criatividade, música, voz, tambor, e também trilha de teatro pra criança. Fiz muita trilha pra teatro infantil e faço parte da Companhia Triângulo de Bonecos e Atores. Fiz um espetáculo que é O Passarinho Me Contou, onde “O Vira” estava inserido, porque eram poemas pra crianças, e coisas musicadas, minhas e de outros autores, pra criançada. E “O Vira” era um ponto fortíssimo, não tem jeito, você toca e a criança conhece, dança, sabe. É incrível o poder de certas músicas de atravessarem gerações e ficarem eternas. É uma beleza, acho lindo demais quando isso acontece.

"Ponto sem Nó" soma pontos de umbanda e canção marítima de Paulinho da Viola ("Timoneiro"), tema paraense de Nilson Chaves ("Dança de Tudo") e versão solo de "Suba na Baleia"

“Ponto sem Nó” soma pontos de umbanda e canção marítima de Paulinho da Viola (“Timoneiro”), tema paraense de Nilson Chaves (“Dança de Tudo”) e versão solo de “Suba na Baleia”, lançada por Luli & Lucina em “Timbres e Temperos” (1984)

PAS: Tem algumas canções que têm um vínculo explícito com o candomblé. As pessoas conhecem pouco seus discos solo, não são muitos, mas também não são poucos, e gosto muito daquele centrado nos pontos de candomblé.

L: O Ponto sem Nó (2002).

PAS: E tem ali “Suba na Baleia”, dá pra chamar essa de ponto?

L: Não, sabe por quê? Mal comparando, o ponto é o jingle perfeito.

PAS: Como assim?

L: É porque normalmente, quando você apresenta um ponto, você está no terreiro tocando. Eu toquei em terreiro 30 e tantos anos da minha vida.

PAS: Não toca mais?

L: Eu pedi licença há uns anos, porque eu estava muito cansada. No palco você toca uma hora, e mesmo assim não é uma hora toda de tambor. Mas num terreiro você toca quatro, cinco horas sem parar.

PAS: É um trio elétrico.

L: É um trio elétrico. Falei, gente, não tô dando conta. Tem uma hora que você fica meio cansada – meio é ótimo, você fica bem cansada. Apesar de que eu pego um tambor e mando muito bem.

PAS: Eu queria falar de “Suba na Baleia” (1984) e de “Gira das Ervas” (1982), que são duas músicas da dupla e estão naquele CD solo dos pontos. Juntei tudo numa pergunta.

L: “Suba na Baleia” é uma homenagem aos orixás. É uma homenagem mesmo, declarada, a gente fala de cada um, o que acontece. “Gira das Ervas” é, imagina, uma louvação à Jurema, então está fortissimamente ligada a Oxum. São músicas ligadas aos orixás. O ponto serve pra saudar, pra explicar, pra reunir e pra dispersar. Ele tem muitas funções. Mas ele tem que ser muito rápido, você canta num terreiro na primeira vez, na segunda todo mundo aprendeu, e na terceira, se todo mundo não cantar, o ponto não é bom. O ponto é assim. Por exemplo, vou cantar um ponto da gente (canta): “Vento, que vento, que vento, que ventania e que furacão/ chuva, que chuva, que chuva, que chuvarada com raio e trovão/ (pega um tambor para acompanhar) vem dançar com o pé de Iansã/ vem cantar com a voz de Iansã/ Iansã lave o seu coração”. Eparrei, Oyá. Esse é um ponto. Você falou de Iansã, disse o que ela faz, sabe que ela está ali na natureza, na chuva, na ventania. Isso é um ponto mesmo, tocado em terreiro. E eu fiz um CD de ponto, que é o Gira de Luz.

PAS: Esse não conheço.

L: Ele não foi comercializado.

PAS: É tão secreta que tem até discos secretos, Água dos Matos, esse…

L: Gira de Luz é secreto mesmo. A única vez que lancei foi lá na Noruega, no Sacred Drumming Festival, o festival de música sagrada. Eu levei os pontos de umbanda, montei um set de tambor, um grave, um médio grave e um agudo, e levei os pontos mesmo. Fiz lá a apresentação dos pontos, e aí levei esse CD. Foi um CD que eu fiz pra mim, eu e Mário Avelar, que é meu parceirinho, fizemos para os orixás.

PAS: E não querem que a gente conheça?

L: Eu preciso na verdade masterizar ele legal. Foi feito durante meses, dia após dias. Ia pra casa do Mário, ele tem um home estúdio – tinha, ele faleceu recentemente. Fomos fazendo. Tem pontos meus, meus com Luhli, meus com Mário, do Mário. É uma coisa muito de homenagem pessoal pros orixás. Hoje em dia, praticamente, está proibido, vamos combinar? A intolerância religiosa é um negócio gravíssimo.

PAS: Eu queria mencionar isso, a gente falou de preconceito antes, e isso andava quieto, mas nunca deixou de existir. Esse lado tanto seu quanto da Luhli é polêmico, digamos.

L: Nunca foi polêmico, e agora infelizmente agora a gente está num momento fundamentalista, de intolerância religiosa. E isso é muito grave, muito grave, porque é uma invasão na escolha de cada um.

PAS: Na religião do outro, porque o que você tocou é religião também.

L: Isso é religioso, sim, é da umbanda, e eu tenho o direito de ser umbandista, você tem o direito de professar qualquer religião que quiser. É um absurdo. Estamos falando de preconceito religioso, de preconceito de uma maneira geral.

PAS: E estão todos ouriçados agora, não é só esse.

L: É, eles estão alimentados, infelizmente, por uma fúria burra.

PAS: E assustadora.

L: E assustadora, porque é burra, então se permitem a tomar ações em função de uma situação de ignorância e truculência sem necessidade alguma.

PAS: Você era muito jovem na outra ditadura, quando começou. Dá pra comparar as duas situações, a de agora e aquela?

L: Sob o meu ponto de vista?

PAS: Sim.

L: Olha, no começo da ditadura eu não tinha muita consciência do que era aquilo. Mas eu tomei rapidamente, já no final dos anos 1960, lá pelos 1968, eu já estava bem inclusive envolvida, junto com meus amigos. Já era artista, já tinha virado, de repente virei artista.

PAS: Grupo Manifesto era meio da outra vertente, não era? Era meio…

L: O quê?

PAS: Reaça?

L: (Ri.)

PAS: Algumas letras ali, sei lá… É um testemunho histórico incrível, mas…

L: É, eles eram meio alienados. Na verdade era um monte de garotada mais alienada, mais ligada na poética e em outras coisas. Mais tarde… Mas o próprio disco que Mariozinho Rocha fez com o Manifesto…

PAS: Vamos explicar para o querido telespectador, ele é hoje em dia o manda-chuva das trilhas sonoras das novelas da Globo.

L: Exatamente, há muitos anos ele é.

PAS: Vamos dizer que há toda uma ditadura, faz uns 50 anos.

L: Exatamente, o Mariozinho fez um manifesto gravado pela Elis, onde ele tinha uma posição. Mas essa posição foi um passaporte pra ele, e com a inteligência dele, uma pessoa muito esperta, muito rápida, ele foi, virou júri do Flávio Cavalcanti, junto com o Guto Graça Mello.

PAS: Que também era do Grupo Manifesto.

L: Que era parceiro dele, era do Grupo Manifesto também.

PAS: Quem mais era mesmo?

L: Gracinha Leporace, que depois se casou com Sergio Mendes. Fernando Leporace, irmão da Gracinha, que era um dos bons compositores, é um excelente compositor. Amaury Tristão, que se mandou pros Estados Unidos e nunca mais voltou. E Augusto Pinheiro e José Renato Filho, que só cantavam, eram parte do coro. Nós éramos as solistas. Era uma turma boa. E Junaldo Duarte, que é um baiano, era um pouco mais velho que todo mundo, um cara mais vivido, que virou Juju Duarte, foi gravado recentemente acho que na França, está lá na Bahia há muitos anos. Mas Guto e Mariozinho eram os compositores da galera, junto com Fernando, e entraram como jurados do Flávio Cavalcanti e de lá eles foram pra Globo.

PAS: Só pra contextualizar, um é o cara que decide que músicas vão tocar nas novelas e o outro é o produtor do Roberto Carlos, só.

L: E arranjador, excelente arranjador. Mariozinho também, mas Mariozinho realmente virou um coxa gigante.

PAS: Já tentei entrevistar, mas ele foge.

L: Não, você não vai conseguir. Eu nunca tentei falar com ele.

PAS: Ah, você não tem mais contato?

L: Não tenho mais contato? Não tenho mais contato desde a minha outra encarnação, quando eu era do grupo.

PAS: Ou da outra encarnação dele (risos). Pô, Mariozinho, se você estiver assistindo manda um alô (risos). Olha, Lucina, sua amiga de juventude.

L: Poxa, Mariozinho.

PAS: Linda, incrível.

Patrícia Ferraz: A mãe de Lucina diz “já almoçou muito aqui, tomou muito meu uísque”.

L: É verdade, você tomou muito uísque da minha mãe.

PAS: É, quando você falou antes de escolha, as oportunidades estavam todas ao redor, né? Não sabíamos, na época.

L: Não. Depois do Manifesto aconteceu uma coisa muito interessante, que foi o fato de que quando parti pra carreira solo minha primeira parceira foi a Joyce.

PAS: É? Olha só, que coisa linda.

L: E a Joyce, sim, ela já tinha um lance muito politizado e estava circulando naquela galerinha de que eu era amiga, mas não tinha ainda uma intimidade. Eu passei a ter essa intimidade, e aí o discurso ficou sendo mais definido e a gente passou a participar ativamente de uma resistência àquilo tudo, os festivais, em seguida eu fiz o Festival da Record, entrei como compositora.

PAS: Tinha um outro nome…

L: Lucelena, porque, louca, não sabia o que fazer. Meu nome é Lúcia Helena, né?, o nome verdadeiro.

PAS: Voce contraiu e transformou numa palavra só.

L: A Philips contraiu.

PAS: Ah, não foi você?

L: Eu não sabia, não sabia, eu não sabia nada.

PAS: E Lucina?

L: Quando comecei a carreira com a Luhli… Porque eu parei tudo, né? Depois de Lucelena gravar, entrar no festival da Record e tudo mais, eu dei um tempo. Mas a Lucelena frequentou a casa de Guilherme Araújo aqui em São Paulo junto com toda a tropicália.

PAS: Ah, é?

L: É.

PAS: E você fala dela na terceira pessoa.

L: Não, sou eu mesmo (risos). Fiquei muito amiga do Torquato Neto, era louca por ele. E participei de algumas reuniões, porque ali a galera concebia todo o conceito da tropicália, que foi toda pensada. Ela tinha grandes pensadores, né? Tudo que aconteceu ali não era exatamente espontâneo. As reações, sim, mas o conceito, “vou fazer essa ação”, era pensado. Em algumas reuniões eu estive ali, acompanhando. Foi uma vivência muito forte pra mim.

PAS: Você não se sentiu parte do grupo, ou eles não sentiram? Eu não chamaria você de tropicalista.

L: Não, eu estava um pouco de ouvinte mesmo. Eu fui influenciada por aquilo, com certeza.

PAS: Mas não a ponto de fazer um som que ficasse parecido com o deles.

L: Não, não, não. Mas você fez uma comparação com a ditadura de hoje. A ditadura de hoje está aí.

PAS: Podemos chamar de ditadura?

L: Podemos chamar de ditadura.

PAS: Também acho, mas não está se falando ainda.

L: Ainda não. Está começando como plano. Está indo muito bem o plano deles, de exterminar com os artistas. Ou seja, qualquer reação inteligente, interessante, está sendo limada.

PAS: Você acha que está se fazendo isso conscientemente?

L: As casas de espetáculo fechando, a falta de incentivo público. As opções são bem pequenas. Os artistas são resistência. A cultura significa, não sei, micróbios dentro de um laboratório. Ela está sendo realmente dizimada, eu acho. É uma coisa muito séria. Infelizmente a gente é desunido, porque tem aquela famosa história de que as pessoas querem sobreviver, então cada um vai lutar pelo seu na hora H, socorro. Sinto muita desunião, é muito triste.

PAS: O diabo é que isso que você está falando vale pros artistas, pros gays, negros, índios, mulheres, pessoas do candomblé, vários grupos que tem gente querendo dizimar e não estão se unindo suficientemente.

L: Pelo menos o grupo dos gays, de toda essa diversidade, está mais organizado. Acredito que é o grupo social mais organizado atualmente. Os outros não têm organização, não. E aí, como não tem união, malando, o que a gente faz nessa hora? Era pra todo mundo estar abrindo seus contatos, fazendo essa arte circular, todo mundo trabalhando, talvez ganhando um pouco menos, mas todo mundo ganhando. Está todo mundo fazendo o jogo que é o jogo que já existe há tanto tempo. Um grande patrocinador prefere pagar R$ 1 milhão pra um cantor de massa fazer um show num dia do que ter um projeto que aconteça durante um ano inteiro, dando trabalho a um monte de gente. Isso aí é o próprio capitalismo. E a gente está sentindo duro, o jogo está muito duro. E ele é insidioso, ele quase não parece que é, e cada dia você tem um pouquinho menos. E fora a corrupção, que está acontecendo em todos os setores do nosso país, to-dos. É incrível, até nos programadores de show, em qualquer lugar. É uma coisa estarrecedora.

PAS: Nesse contexto festivais como Rock in Rio são os pega-trouxa para parecer que ainda existe cultura, que tem gente gostando e investindo por uns poucos dias de atrações estrondosas.

L: Sim, é mais um, exatamente.

PAS: A “Gira das Ervas” cura alguma dessas coisas?

L: Cura o coração da gente. E chama um canto guerreiro. Porque você sabe que os toques, cada toque, dentro da umbanda… Dentro do candomblé também, mas eu não entendo nada de candomblé, tá? A umbanda é religião brasileira, uma grande síntese. Imagina uma panela em que se colocou uma série de influências e misturou.

PAS: O africano, o indígena e o europeu?

L: É. Mas nos toques da umbanda, que são muito mais simplificados, são só sete toques, você tem o toque que é o toque que dá um tchan (pega o tambor). A “Gira das Ervas” justamente tem isso, esse toque está dentro dela, ela está puxando isso (toca). Esse ijexá bota você pra andar, né? (Canta.) “E aroeira/ aroeira/ aroeira/ artemísia, arruda, alecrim, erva cidreira”, e no final diz… Você quer que eu toque ela inteira? (Toca.) “Mamãe Terra/ mamãe Terra/ mamãe me diz que as ervas são feitas pra curar.” Isso te chama, te dá força. É um toque que faz, você anda, te move. O inconsciente coletivo é uma coisa incrível, quando você tem um toque, um ritmo constante, você vai ser influenciado por esse ritmo, até onde você consegue escutar. Pode estar muito longe ouvindo aquele ritmo, tudo que você fizer vai estar condicionado a essa pulsação. Essas pulsações modificam a gente. O Que a “Gira das Ervas” é capaz de fazer? Ela te bota pra andar, e te lembra de que as ervas são feitas pra curar. Olha pra mamãe Terra, se liga na Amazônia e na Terra de maneira geral, que é o que a gente tem né?

PAS: Pantanal, Aquífero Guarany.

L: Isso.

Viewing all 51 articles
Browse latest View live